CATADORES DE ALMAS - 2a PARTE - Uma aventura de Lucrécio Lucas e Padre Tércio >> Zoraya Cesar


Uma hora da manhã. O telefone começou a tocar. Lucrécio Lucas estremunhou debaixo dos lençóis. Uma parte de sua mente recusava-se a aceitar a interrupção do sono. Outra parte gritava acorda acorda acorda.  Ele abriu os olhos e tateou na escuridão, tentando alcançar o aparelho e calar o som inconveniente. Olhou o visor. Padre Tércio chamando. Uma corrente de adrenalina perpassou seu corpo, acordando-o completamente. 

- Meu amigo, acabaram de roubar uma alma bem debaixo do meu nariz. Devo estar ficando velho. Não percebi a aproximação da criatura. Bem, percebi junto com o cachorro, já é um consolo. 

Lucrécio Lucas sorriu. Nunca que o Padre Tércio, não importava a situação, perdia o humor.

- Estou à disposição, Padre. Quer que vá buscá-lo?

- Não, obrigado. Prefiro que deixe preparado meu cálice de Sheridan's com café, por favor. Estou  precisando. Tentarei  pegar as informações necessárias e vou até aí.  

Desligaram. Antes de seguir viagem, as almas deixavam um rastro pulsante de emoções, lembranças, desejos. O Padre tentaria descobrir como foram os últimos dias do morto, do que sentiria mais falta, do que gostava, ao que era mais apegado, o que mais amava, um momento feliz. E do que tinha medo. Principalmente isso, do que tinha medo. Não era fácil, não era simples, mas era possível a um Caçador experiente como Lucrécio Lucas rastrear uma alma a partir desses dados. 

Enquanto aguardava,  pôs-se a pensar. O que acontecera? Era inaudito que um Catador de Almas roubasse na frente de um padre. Muito menos de Padre Tércio! O mundo espiritual conhecia o Padre – de fama ou de (dolorosa) experiência própria. Catadores eram uma seita antiga e perigosa, mas seus membros eram cuidadosos, não se arriscariam a enfrentar-lhe a fúria ou chamar demasiada atenção. 

Uma explicação possível era que se tratava de um novato no ramo, inexperiente; ou sequioso, talvez, por fama e glória – e mais alguns anos de vida (decadente e decrépita, mas vida). Se um desses ladrões se descontrolara e resolvera agir por conta própria, desobedecendo às regras da irmandade (e uma delas era não mexer com Padre Tércio), o Equilíbrio de Todas as Coisas estava seriamente ameaçado. 

Lucrécio Lucas sentiu alguma esperança. Se era mesmo um neófito, um Catador errante, isso podia facilitar o resgate. No entanto, tempo era um fator determinante. Em alguns dias a alma roubada se desvaneceria nos domínios do Catador e seus vestígios desapareceriam. Impossível rastrear um Catador a esmo. Esperaria as informações de Padre Tércio, depois traçaria uma estratégia.

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Padre Tércio, quando nervoso,
gostava de tomar um cálice
de Sheridan's com café. 
Por volta das 4 da madrugada, o Padre chegou. Abraçaram-se, como velhos amigos de combate que eram. Lucrécio preparara uma refeição ligeira para o amigo, que, conforme esperado, estava faminto. Enquanto comia, Padre Tércio passava as informações angariadas. Quando terminou, o dia amanhecera. Ele, exausto, foi dormir no quarto de hóspedes. A idade e os anos de luta contra o Mal cobravam seu preço. 

Lucrécio Lucas tomou um chá de alcaçuz, para manter-se acordado, alerta e concentrado. Fez seus exercícios tibetanos no alpendre e, por alguns instantes, apreciou os raios de sol se espalharem pelos grãos de areia, fazendo a praia parecer um imenso chão de pequenos brilhantes, que sumiam na espuma das ondas.  É tão injusto, pensou, que na hora da passagem para a próxima etapa uma alma perdesse o direito de escolha. Mesmo que fosse uma má escolha.

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A primeira parte de uma estratégia de guerra era  planejamento. No mundo espiritual não existia ensaio. 

Por onde começaria a procurar para descobrir o esconderijo do Catador? Como vencê-lo e resgatar as almas? O que faria com as que já estivessem irremediavelmente corrompidas? 

A quem poderia recorrer? Pois ir sozinho era uma temeridade. Uma caçada espiritual era como um esporte radical ao ar livre: sempre se deve ir acompanhado. Além disso, lutar contra seres do mundo espiritual, encarnados ou não, às vezes exigia o preparo mental e físico de um desportista de alta performance – era extenuante, tenso, perigoso e demandava o máximo de concentração. Um segundo de distração podia trazer consequências piores que a morte. 

E, finalmente, devia estar preparado para o mais importante: conhecer e dominar o medo. Cada luta astral deflagrava medos profundos e recônditos, que despertavam com força e fúria durante uma batalha, dominando a mente, o corpo, o destino do combatente. Muitos Guerreiros da Luz sucumbiram, não à refrega, mas aos seus próprios medos. 

O que mais temia, ele, Lucrécio Lucas? Ao enfrentar um Catador de Almas, qual seu medo mais profundo?


Continua dia 7 de agosto a 3ª e última parte.

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Outras aventuras de Lucrécio Lucas, algumas com Padre Tércio

Os Caçadores - um dia da caça, outro do caçador. 

I Maledetti - todos malditos: vítimas e algozes

O Gato - parte 1 - nem durante as férias ele descansa

O Gato - parte 2 - mas a vida e a morte são assim mesmo

Caçadas noite adentro - nem tudo é o que parece; aliás, nada é o que parece

Viúva Negra - nem sempre o mau se dá mal

A Amante - a origem do nome do Lucrécio Lucas

A hora dos mortos - parte 1 - quando uma Alma pede ajuda

A hora dos mortos - parte 2 - quando a Alma recebe a ajuda.

Comentários

Anônimo disse…
Está ficando interessante. Espero o final no próximo capitulo. Não invente um quarto capitulo!
Anônimo disse…
Com todo respeito as religiões, mas tenho medo de bruxaria, magia negra, macumbaria, etc kkkkk
S2 Lucrécio S2 não acredito que são mais 15 dias percorrendo a trilha de emoções que esse conto desperta! ;)
Érica disse…
Sabiaaaaa... Essa história não estava com cara de que ia acabar agora... só comento na última parte kkkk
Marcio disse…
E agora, o que comentar?
Há 15 dias, estávamos tentando achatar a curva da pandemia, a Zoraya escreveu um texto que era apenas a primeira parte de uma obra maior, e eu havia estabelecido uma regra pessoal de não comentar textos ainda não concluídos.
Hoje, estamos tentando achatar a curva da pandemia, a Zoraya escreveu a segunda parte desse mesmo texto, e eu estou tentando manter a regra de só comentar textos já concluídos.
Daqui a 15 dias, estaremos tentando achatar a curva da pandemia, a Zoraya vai escrever a terceira e última parte do texto e eu...
Clarisse Pacheco disse…
Ansiosa pelo desfecho...
branco disse…
texto preciso. se esperar ansioso pelo próximo capitulo, o motivo é simples (e você sabe qual). pois bem, estou ansioso pelo próximo.
Albir disse…
Suas histórias são cantos de sereia. A gente fica com medo, mas vai.
Carla Dias disse…
Ah! Eu achando que teria de esperar muito, mas hoje é dia 7!
Zoraya Cesar disse…
Gente, gente... nem sei como agradecer os comentários sempre tão generosos. E, no caso do Márcio, tb engraçados!
Anônimo... eu tb tenho medo hahaha, e é bom que tenhamos mesmo, medo e respeito,né? Sempre bom, como canja de galinha.

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