ATÉ QUANDO, NÃO SEI... >> Sergio Geia
A aurora matizava o céu de lilás e dourado e me pegou a caminhar.
Não. Não afrouxei o isolamento. Continuo de quarentena. Até então saía uma vez por semana, aos domingos, para levar almoço à minha mãe. No retorno às caminhadas, procurei o melhor horário, o mais conveniente espaço. Saio vestido também de máscara, espeto um boné na cabeça, guardo o álcool gel no bolso. Na volta, o ritual: banho, roupas na máquina, tênis ao sol, depois de higienizado.
O meu corpo sentia carências, e estava a funcionar mal. O intestino retornara à velha preguiça de sempre. Os movimentos de braços e pernas eram dificultosos e lentos. Qualquer tempinho gasto em posição imprópria se transformava em dores por dias. A cabeça, às vezes, não encontrava o ponto que gera equilíbrio. Assim, a mim, caminhar se impôs; mais do que prazer, necessidade.
Que tempos estranhos. Eu encontro alguém sem máscara na rua, e sinto imediata repulsa. É ruim esse sentimento, ainda mais quando a gente avista que a rua anda apinhada de sem-máscaras. Quando vão entender que usar máscara não é atitude autoprotetiva, mas de proteção coletiva? E que não usar máscara é atitude egoísta, arrogante e perigosa? Desvio o caminho, mas o sentimento já nasceu ali, reverbera, e é ruim, muito ruim.
Na parede do VIPS surge um grafite novo. Um casal está à mesa de um bar; os dois parecem astronautas. Bebem alguma coisa, há uma rosa vermelha sobre a mesa. Mas a cabeça deles está coberta por uma espécie de capacete que veda até os olhos, a boca, o nariz. O grafite seria a profecia para os novos tempos?
A pintura é emblemática por destacar o cenário sobre o qual vinha pensando havia dias: a humanidade refém de uma vacina. Quer coisa mais irônica? O homem, com toda a sua empáfia, ter a sobrevivência condicionada à descoberta urgente de uma vacina, pena de ver a raça dizimada, varrida da face da terra? E logo vejo uma mocinha sem máscara passeando com o cachorro; o atleta molhado bufando de correr sem máscara. Vejo de longe, pois se antes aquele era também o meu espaço, eu mudei, por conta da prepotência humana. No peito, os sentimentos ruins se mexem; e dói.
Se há algo que salva nesse salve-se quem puder, é a sensação de respiro que o retorno à caminhada me proporciona. O ar fino da manhã enchendo os pulmões. O amolecimento do corpo então retesado. Os bichinhos do bem estar a se multiplicar. O dia tornando-se mais leve e saboroso.
O que salva é ver o céu desabrigar o escuro da madruga para se tingir de dourado e lilás. A réstia de luz de um sol tímido a perpassar a copa das árvores. O que salva é se deixar acarinhar por uma nesga de brisa fria. É deleitar-se ante o colorido das azaléas. É ouvir bem-te-vis a cantar. É gozar o arejo de belezas a mudar a vibe de um dia comum.
Ilustração: Kafka
Comentários
Albir preciso como sempre. Grato, amigo.
Zoraya, talvez pelo fim da tarde lilás rsrs. Amo essa canção. Beijos!