Escritor de contos e crônicas, André Ferrer é farmacêutico e bioquímico. Deu aulas de Química em universidade e participou com seus textos nas antologias de contos A morte do outro lado da luneta e Grenzenlos.
Se estivesse atento ao entorno como normalmente estou; se estivesse atento como normalmente estou num lugar aberto como aquele; se estivesse atento aos movimentos que estavam sendo costurados, eu perceberia. Eu perceberia fácil, fácil os movimentos nos olhares, no andar, nos agrupamentos, na conversa amiúde. Eu faria a leitura óbvia, meio assim: olha, cuidado! Não cheira bem. Presta atenção: tá na cara que estão tramando, fica esperto, meu camarada. E é com você, entendeu? Se for o caso, pegue as suas coisas e vaza, vaza rapidinho. Era fácil perceber, afinal, tão comuns eram eles, e não estavam nem um pouco interessados em eclipsar os movimentos, os filhos da puta estavam armando na minha cara. Ocorre que o tonto aqui tinha a visão túrbida, e ela se fizera túrbida de repente, como se para eles eu estivesse a usar óculos com lentes inadequadas para a minha necessidade de visão. Meu campo de visão se embaçara de repente — essas coisas acontecem de repente. Meu campo de visão se embaç
Rafael analisava os gráficos no computador. Os números apontavam para uma ligeira diminuição da criminalidade na região metropolitana. Suspirou: — Já não era sem tempo. Ele recordava as decisões tomadas, o reforço no policiamento, especialmente nas regiões mais sensíveis, a contratação de novos policiais, a compra de armamento e veículos, enfim, foram medidas adotadas que tinham de trazer algum resultado; trouxeram. Talvez a melhora tenha sido pequena, mas os indícios de se tratar de uma tendência eram perceptíveis, e isso era bom. Havia silêncio no grande escritório mesmo com muita gente trabalhando. Ao fundo era possível ouvir a voz fina de Marisa Monte cantando Vilarejo, o som de teclados sendo tocados por dedos ágeis, um arrastar ou outro de cadeiras, algumas respirações profundas, diálogos em voz baixa. De repente, o trinado macio de um telefone, quase inaudível, suspirou na mesa de Rafael. Era Roxane, a bela secretária do chefe: — Rafael? O Coronel está chamando. Pra você s
- Quem escreveu isto? - perguntou a diretora, mais séria que de costume, olhando para os quatro suspeitos. Os quatro eram os alunos de melhores notas, que tinham direito a sentar nas carteiras duplas em frente à professora. Naquele mês, Silvinha, primeira colocada, sentava-se à esquerda. Celinha, segunda melhor nota, ao seu lado. Na carteira de trás estávamos eu e Hilda, como terceiro e quarto lugares respectivamente. Eu estava entre os quatro por razões político-econômico-administrativo-pedagógico-aleatórias. E era, por isso, um garoto de muita sorte. Cheguei mesmo a ouvir de Dona Creusa - um misto de servente, inspetora e fofoqueira: - Esse menino dá muita sorte nas provas. Está sempre nas primeiras carteiras! É que as escolas públicas não comportavam todos os alunos e o governo dava bolsas de estudo em escolas particulares. Eram os bolsistas. E foi assim que eu fui parar numa escola, não digo de classe média, era um bairro pobre, mas que tinha alunos de
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