SOGRA EM PÓ >>> Nádia Coldebella



Seu Izidoro infartou em legítima defesa, provando por A mais B que a morte pode ser uma saída inteligente para ficar longe de gente detestável. A relação falida com Odete — dona Dedé para os íntimos, se houver algum — durou 45 anos, e ninguém explica o porquê. Mas o fato é que dez dos onze filhos bateram a porta na cara da velha viúva após a morte do pai, sem qualquer arrependimento por negar acolhimento à mãe.

A décima primeira era Nildinha, uma infeliz que herdara o gene da piedade filial e chamava a malvada de saias de mamãe. Mas o infortúnio chegou mesmo para Quinzinho, o genro, que, depois de um único dia de convivência, já estava com refluxo. Ele se culpava, amargamente, por não ter seguido o conselho dos outros dez filhos. Poderia ter levantado cinco metros de muro. Poderia ter treinado um pitbull ou dois. Poderia ter colocado fechadura eletrônica. Poderia ter cercado a casa de câmeras e alarmes. Poderia ter evitado o pior — dona Dedé, no caso.

De cara, ela já mostrara o brilho que tinha: o de uma megera, fofoqueira, intrometida, futriqueira, intrigueira, manipuladora e fingida. Com tantas “qualidades” pululando o ambiente familiar, não restou alternativa a Quinzinho senão praticar exercícios de escrita criativa para não enlouquecer. Ele despejou o seu ódio contido à sogra numa lista diária chamada "101 infortúnios vividos na presença da bruxa em 24 horas" (e já aviso ao leitor: não reproduzo aqui porque não cabe no texto, mas dizem que o texto pode, futuramente, virar um manual). Seu afinco e determinação logo foram recompensados com o mais saboroso livramento do destino. A fada do caos picou a mula deste mundo cerca de um ano depois de chegar à casa da família.

Suspeitar de Quinzinho, todo mundo suspeitou, óbvio, tamanha era a aversão do coitado, só ignorada por Nildinha. Mas isso era especulação, porque coragem não era com ele. A verdade é que, depois de dividir o teto com o capeta, ele só rezava por intervenção divina — e posso garantir que, se houve uma mão piedosa para livrar o mundo dessa desgraça, definitivamente não foi a dele.

Por causa da ojeriza ao falecido marido, Dona Dedé tratou de garantir a própria alforria eterna, mesmo na terra dos pés juntos. Ser enterrada ao lado de Zidinho, nem morta. Portanto, foi com muita revolta — mas nenhum espanto — que o genro tomou conhecimento do testamento do além-túmulo, que só beneficiava a empacotada. Todo o dinheiro que ela deixara deveria ser usado numa cerimônia de cremação. Ela preferia ser cinza, espalhada ao vento, num paraíso tropical a ficar perto do túmulo onde o finado bufava de raiva em silêncio. Só que nada de paraíso tropical, o dinheiro era suficiente apenas para virar brasa.

O testamento era claro: cerimônia na beira do mar, cinzas jogadas de uma pedra ou penhasco, vento batendo, poesia no ar. Romântico demais para a sereia do inferno, mas quem era ele para discutir com papel registrado em cartório? A tormenta ambulante era ardilosa até na morte e garantira um jeito de prolongar o calvário do pobre genro, que precisou resignar-se. Ele até insistiu com Nildinha para jogar as cinzas da defunta num bueiro, mas Nildinha assumiu, espantosamente, por um segundo, o modo cobra cascavel da senhora das trevas e soltou:

— Se não for como mamãe pediu, não será de jeito nenhum.

Em outras palavras, o homem inconsolável (de raiva) foi condenado a engolir o desespero e a contemplar diariamente o vaso de cinzas, que a esposa colocara na cômoda, bem em frente à cama, iluminado por uma tênue luz de LED estrategicamente plantada. Como se o que já era ruim não pudesse piorar, a partir daquela noite começava um tormento ainda maior — sim, caro leitor, o calvário de Quinzinho tinha graus e degraus, sempre ladeira abaixo. Em vida, dona Dedé se metia na sala, na cozinha, no banheiro, na despensa... Morta, ela assistia o casal dormir, embalada pelo gemido da filha que apagava a luz, sentava na cama e suspirava: “mamãe... mamãe...”

Depois de alguns meses de tortura diária, o pobre homem só desejava estar do outro lado, mas logo mudava de ideia, porque cruz credo fazer companhia pra velha no além! Nem Rivotril, nem Zolpidem regado a vodca, nem coisa nenhuma apagava aquela maldita luz que iluminava o recipiente amaldiçoado. O ódio já alcançava patamares que começavam a interferir na convivência com a esposa. Se ele não fizesse alguma coisa, rápido, talvez fosse ele o próximo a tombar, talvez pelas mãos de Nildinha, implorando para virar cinzas em algum paraíso inalcançável.

Quinzinho resolveu trabalhar dobrado, triplicado, quintuplicado. O objetivo era justo: juntar o dinheiro para a tal viagem de espalhamento de cinzas. Se fosse preciso varrer rua, varreria, só para ver a criatura do além ser varrida da face da Terra. Se fosse preciso vender a alma, venderia, desde que fosse para o diabo, não para a sogra — porque esse carma já tinha sido pago, e qualquer prolongamento era fatalidade.

A decisão foi sábia. Dias depois, um sorriso acendeu o rosto de Nildinha. Semanas depois, foi chamado no outro quarto para dar umazinha com a esposa, sem nenhuma luzinha escabrosa interferindo no romance. Meses depois, comprou as passagens e levou a mulher e os dois filhos para o tal paraíso, cheio de praias, pedras e penhascos.

Por causa do chororô de Nildinha, Quinzinho fez muita força para não gargalhar ao ver o testamento ser cumprido à risca: todo mundo vestido de branco e pulando ondinhas durante o ritual de exorcismo, digo, de despedida. Andaram pela praia cabisbaixos — ele, óbvio, para esconder o largo sorriso — e chegaram à beira do penhasco. De acordo com as recomendações finais, a esposa deveria chegar à borda, virar o relicário do inferno ao vento, deixando as cinzas voarem. Ela deveria proferir doces palavras de adeus, enquanto o genro e os filhos cantariam um hino aleatório.

Eles até tentaram, mas não rolou: a família era muito desafinada, e a esposa tremia inteira, agarrada ao vaso, histérica, balbuciando mamãe, mamãe. O filho mais velho, o único que ainda mantinha um fiapo de juízo, retirou o pote das almas dos braços da mãe e entregou ao pai. Claro.

Ali, na beira da pedra, em êxtase, Quinzinho olhou para o tesouro fúnebre em suas mãos e disse baixinho:

— Desapareça, broaca horrorosa, vá pra pqp e nunca mais volte — e virou a caixa de pó de uma vez, na força do ódio, com pressa... e uma pontinha de alívio. E viu as cinzas flutuarem, candidamente, precipício abaixo.

Ah, mas o carma, esse moleque sacana, que já havia sido pago, resolveu aparecer para dar o troco! Trouxe consigo o vento, traiçoeiro como a falecida, junto com as cinzas, que vieram todas de volta ao encontro do genro desacorçoado.

Olhos, ouvidos, nariz e boca: Quinzinho viu, ouviu, aspirou e engoliu a sogra em formato de pó ancestral.

Depois disso, ele nunca mais dormiu tranquilo. Síndrome do pânico, culpa reprimida, ódio condensado, ninguém sabe. Mas a separação parece iminente. Toda noite, ele olha para a esposa e enxerga a matriarca maldita fazendo pose de esfinge no travesseiro. Nildinha também não consegue mais olhar para o marido sem lamentar mamãe, mamãe.

Mas a sogra, pelo menos, descansa em paz. Dentro do genro, é claro.

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Comentários

Anônimo disse…
Vou voltar aqui ler toda vez que estiver desanimada, pois logo quando ler, vou ficar feliz em saber, que pelo menos não sou o pobre coitado do Quinzinho KKKKKKKKKKK
Zoraya Cesar disse…
Concordo com Anônimo, putz, mas eu ri tanto! Será q vou para o inferno, por rir tanto da desdita alheia? Reli, e já sei q esse ficará histórico!

Mas, vejamos, o carma sabe a quem atacar. Pq o moleirão nao deu logo um chega pra lá na sogra e na mulher? Pq aceitou tudo calado? A falta de coragem cobra seu preço hahahahaha, gente, eu imaginei a cena dele engolindo as cinzas kkkkkkk

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