UM LUGAR CHAMADO BELELÉU >>> Nádia Coldebella
Em uma manhã fria de julho, acordei sem uma das minhas meias. Com o pé congelado, fiz uma busca discreta debaixo das cobertas, mas não achei nada. Então usei o pé quente, pensando que o congelado estava insensível, mas, ainda assim, nada. Resolvi investigar um pouco mais: sentei na cama, fiz uma barraca com as cobertas — não queria congelar —, acendi a lanterna do celular e vasculhei tudo. Meu gato aproveitou para conhecer o novo refúgio e me ajudar na busca. Nada. Como já era hora de acordar, tomei coragem, saí da cama, coloquei dezoito camadas de roupas e comecei a tirar, uma por uma, as quinze camadas de cobertores, em busca da meia perdida. Nada. Nadinha de nada.
Na madrugada do dia seguinte, acordei e pensei nas minhas meias. Como meus pés estavam bem quentes, retirei as duas debaixo da coberta. Acordei pela manhã com as duas meias encaixadas nos pés. Portanto, a resposta era óbvia: minha meia desaparecida foi para o Beleléu.
Meias irem para o Beleléu é a coisa mais óbvia e comum do mundo. E geralmente uma vai e outra fica, por causa da separação cármica dos pares de meia. As que ficam eu guardo numa gaveta do meu guarda-roupa, na esperança de que a parceira, arrependida, compareça. Às vezes acontece, quando a meia some contra a vontade.
Em geral, toda sorte de coisas pode acabar no Beleléu. As que vêm em pares, como meias, causam mais impacto, porque uma sempre fica para lembrar da outra. Mas outras coisas vão para lá: canetas, sapatos, brincos e, claro, tudo o que você mais precisar em algum momento.
Conspiracionistas costumam dizer que a Lei de Murphy — cuja uma das variações diz que a gente sempre perde uma coisa quando mais precisa — é quem rege o Beleléu. Mas eu discordo. Minhas detalhadas observações dizem que a Lei de Murphy rege este mundo, e que as coisas vão para o Beleléu para se autopreservar. Outros dizem que o Beleléu é uma desculpa esfarrapada dos bagunceiros, distraídos e companhia limitada. Isso não é verdade.
Outro dia, por exemplo, meu controle remoto caiu entre as frestas do sofá. Eu percebi e, rapidamente, desencostei os módulos, mas nada. Então chamei São Longuinho, dei três pulinhos, afastei tudo de lugar, olhei por baixo, virei o sofá de ponta-cabeça, e nada. Mas o controle remoto não evaporou: é que as frestas do meu sofá são um portal para o Beleléu. Nada do que cai lá é encontrado depois, a não ser que tenha caído contra a vontade, como eu disse. Foi esse o caso. Ele apareceu dias depois, exatamente no mesmo lugar em que caiu, porque achou um jeito de voltar.
Como mencionei, São Longuinho é o santo protetor das coisas perdidas — talvez a única criatura que já foi humana e que tenha algum acesso ao Beleléu, ainda que de forma limitada. Com exceção do santo, nenhum outro humano foi para o Beleléu. Pessoas não vão para o Beleléu; não adianta inventar. Elas morrem mesmo, se perdem neste mundo ou simplesmente se perdem dentro de si. Beleléu não é lugar de gente, porque se assim fosse, não seria Beleléu. Beleléu é uma espécie de área de preservação das coisas, porque coisas perdidas doem — e, por doerem, acabam ficando presentes. Então você sempre vai lembrar da história de uma vez em que teve uma meia…
Mesmo São Longuinho, coitado, segue uma série de requisitos para atuar no Beleléu: a coisa tem que ter sumido há pouco tempo, para não ter mergulhado de vez; você precisa dar três pulinhos, para impulsionar o santo – e sim, são só três pulinhos, nada de saltos olímpicos; a invocação só vale depois de procurar em todos os lugares possíveis; e, claro, é preciso parar de procurar e se posicionar onde a coisa nunca estaria, para dar espaço ao santo. E mesmo assim, não há garantias...
A provável explicação advém do fato de que o Beleléu não é um depósito com um amontoado de coisas, tipo achados e perdidos. O Beleléu é um local organizadíssimo, cheio de departamentos, setores e subsetores. Recentemente, os administradores contrataram profissionais de TI e instalaram algumas IAs, para facilitar o acesso das coisas. Isso porque, com a demanda atual, departamentos que antes nem se cogitava precisaram ser criados. Para você ter uma ideia, atualmente, no Beleléu, existe um departamento para as coisas afetivas, que é para receber aqueles sentimentos que desaparecem de repente.
A sessão anos 80–90 é a mais interessante, na minha opinião. Ela é rosa pink chiclete neon e comporta uma sessão de LPs e disquetes, além de toda uma série de coisas que as pessoas têm procurado hoje em dia e não encontram. Existem departamentos organizados por tipos, como o de memórias e pensamentos, ou por natureza, como o de coisas de papelaria — é para lá que vão os clips e canetas. Meias têm um departamento próprio.
Embora muitos terraplanistas ainda duvidem da existência de Beleléu (eles acham que as coisas perdidas vão para as bordas da Terra), a verdade é que o Beleléu é um fato. Sua existência é tão real que é uma palavra definida nos dicionários. No Aurélio, Beleléu é um substantivo masculino. Lá, ele explica que as pessoas vão para o Beleléu, mas diz também que é um significado popular para morte, desaparecimento ou fracasso. Nisso o Aurélio — e todos os outros — estão errados. Quem morre ou fracassa é gente, e gente não vai para o Beleléu.
Sobre isso, estou criando um manifesto para consertar o dicionário. Alguns cronistas brasileiros me apoiam. Hilda Hilst disse, muito sabiamente: “Alguém lá no céu descobriu que a gente não vai mais para o Beleléu” . Tem autor brasileiro ensinando isso para crianças, como é o caso de Maria Heloísa Penteado. Tem autores culpando o Beleléu pelos conflitos do mundo, como é o caso de David Lee Stone. Vou parar de citar, para não ficar chato, mas o fato é que estou intuitivamente sintonizada com o corpo de conhecimento sobre o Beleléu.
E por falar em coisas que somem e reaparecem, esta crônica quase não chegou a ser publicada, porque desapareceu do meu notebook. Depois de eu vasculhar, revasculhar e trivasculhar, não achei nada, mas hoje, quando fui abrir, ela reapareceu. O Beleléu precisou analisar minhas descobertas — só pode ser isso — mas vejo que fui aprovada. Isso não quer dizer que eu seja uma abonada do Beleléu — só São Longuinho é. Acho que, como muita gente, tenho o pensamento de que preciso tomar cuidado para não me perder também. Sorte que as pessoas não vão para o Beleléu, senão eu já estaria lá, fazendo companhia para a minha meia. Ai, só São Longuinho na causa.
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A frase citada, que adaptei na maior cara de pau, faz parte do texto Tô Só, Crônica de Hilda Hilst para o "Correio Popular" de Campinas-SP. Tô só - uma crônica de Hilda Hilst,
Maria Heloísa Penteado é autora de "No Reino Perdido do Beleléu", um livro infantil onde o Beleléu é um lugar misterioso para onde vão parar todas as coisas perdidas.
A obra "Escarcéu no Beleléu", de David Lee Stone, continua a série "As Crônicas de Imundo" e se passa na fictícia Chatich, capital do continente Imundo, onde uma seita tenta destruir a cidade, o que configura o "Beleléu" como um local de conflito.
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