OS DIAS >> Carla Dias


Encaro minha humanidade como desafio, pois nem sempre me sinto capaz de exercê-la. Às vezes, encosto no tempo e fico a galantear vazios. Sou assim: meio lá, quase acolá.

Tem dias em que a felicidade me embriaga; e em outros, peço licença à tristeza para trafegar por seus campos, a melancolia a tiracolo. Não há regra, não domino a linguagem dos significados das jornadas. Mas sei que, no final de cada uma delas, há um réquiem à espera, pois, como mencionam os oráculos, é preciso morrer para renascer — benfeitorias no aguardo.

Tem dias em que me sinto repleta, sem motivos ou expectativas. Trata-se somente de uma sensação boa que se levanta comigo; abro os olhos e percebo a vida mais mansa. Dias assim são preciosos, porque a identidade deles vem justamente do efêmero. E o que eterniza esse começo que se agarra fervorosamente ao fim é a nossa capacidade de mantê-lo vivo na memória, mas não como um cemitério de lembranças, de onde tiramos uma nostalgia truculenta, que recorre às cobranças sobre não termos conseguido algo parecido ou melhor. Falo sobre perceber tais dias como milagres que são. Milagres de leveza e agrado, muito parecidos com aquele instante que antecede a revelação de um mistério. Quando percebemos que, depois dele, o antes jamais será o mesmo, ainda que venha a ser bem melhor.

Os dias são como páginas de um livro. Estamos sempre ligados à página atual pelo o que nos revelaram as anteriores; e ao desejo pungente de saber o que haverá nas que virão. Tecelões saberiam explicar melhor a teoria de que cada dia é um, ao conceberem suas obras a partir de retalhos, partes, fragmentos.

Fascina-me orientar solidões ao regalo dos fragmentos. Há inteiros disfarçados nessas partes. Então, há dias em que fico muda, bicuda, sem graça; daqui a pouco sorrio, gargalho, reverbero tolas valentias. Dias em que mil páginas cabem em uma, em uma mistura sem regra de passado experimentado, presente destrambelhado e futuro idealizado. Dias em que todos os silêncios gritam sua mudez na minha alma.

Em dias como este, aquieto-me. Desafio minha humanidade ao observar o mundo, assim, de longe. E, nessa lonjura, desperto a capacidade de voltar ao índice, ler o prefácio, reiniciar a leitura de mim mesma.

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Crônica de um ontem. Publicado originalmente em 28 de novembro de 2007

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