TIFFANY >> ANDRÉ FERRER


IMAGEM: Gemini


A cabeleira úmida, o ricto safado no rosto, a nota de cinquenta reais presa no sutiã. Mal se despediu, a vizinha já havia postado a isca para a próxima jornada.

O mundo acabando e você vendo selfies.

Um tropel enche o corredor. Você lamenta e sente medo de tamanho vacilo. É como dizem (ou escrevem ou repetem): o homem nunca deve se pôr em posição de perder o que não pode se dar ao luxo de perder. O mesmo se aplica às mulheres... Decerto, não a mulheres como aquela.

Você encosta o rosto na porta e sente vontade de espiar por uma fresta, mas a polícia sempre te assusta quando aparece fora de contexto. Um corredor lotado de fardas ainda naquele horário! Alguém já tomou o desjejum?

No meio da barulheira, a velha do 205 diz bom dia. O dachshund late no 202. A voz de Tiffany silencia o guarda insistente.

— Posso explicar...

Nem assim deixava o hábito de imitar a fala dos outros? Um charme. Lembra? Você disse a mesma coisa — que podia explicar — quando ela pigarreou, em plena contratação, e descobriu que não existia criança na sua casa.

— Um misto de babysitter e colegial? Entendi. Quer que eu leve uns tiros para animar?

— De jeito nenhum. Sou careta. Só quero o básico.

Lá fora, o alvoroço tornou a reinar: chamada para o presente.

— Nome completo.

— Tiffany da Silva Souza.

— Okay! Você tem o direito de ficar calada e tudo o que disser pode e será usado contra você no tribunal.

Ora! Dizem assim no Brasil?

Aliviado, você dá meia volta e se aproxima da mesa posta. No celular, a publicidade mais antiga do mundo: papel moeda prensado entre o corpo e o sutiã. Você puxa a cadeira, coloca leite no bowl e chacoalha a caixa de cereal.

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Vamos por partes. Você arrasa no humor seco, quase cruel, sem moralizar. Ai aponta uma podridão banal, observada pelo narrador que não age: ele parece um voyeur medroso, quase cúmplice do espetáculo que observa. Por fim, o Mestre é muito eficaz em fazer o leitor sentir que também está espiando alguém, afundado naquela sensação de ter feito coisa errada, mas ainda assim deliciado com o entretenimento proporcionado pela desgraça alheia. Veredito: André, vc é um verdadeiro membro da Fraternidade da Pá, que se ocupa em cavoucar trincheiras na lama do cotidiano alheio.

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