CATADORES DE ALMAS - UMA AVENTURA DE LUCRÉCIO LUCAS E PADRE TÉRCIO - parte 1 >> Zoraya Cesar

Cansados de chorar, família e amigos externavam sua exaustão em semblantes compungidos e pesados. O corpo jazia ainda entre flores e, até então, o único rosto a apresentar algum tipo de paz era
o do morto.

Padre Tércio chegou, para encomendar a alma. Tudo ocorrera muito rápido, quando o chamaram para a extrema unção já era tarde. 

A percepção da passagem do tempo é algo tão sutil e individual, não há como qualificá-la. Basta dizer que certas pessoas a têm em alto grau. Ao começar o ritual, Padre Tércio sentiu o tempo parar por um átimo de segundo e percebeu o que ocorrera nesse período. No mesmo instante, o cachorro do defunto latiu, rosnou, inquietou-se, e começou a ganir baixinho, causando espanto em todos os que conheciam sua mansidão e quietude. Ninguém, a não ser o Padre, notou: as feições do morto já não estavam tão tranquilas... 

Experiente, sabia que de nada adiantava fazer alguma coisa. A família pensaria que ele enlouquecera  (já não tinha fama de ser muito normal). Pois como explicar que a alma do falecido acabara de ser roubada? Ele deu continuidade ao ritual normalmente, embora com o coração acelerado – de susto e raiva. A audácia daquela criatura! Fazer isso na frente dele, logo ele, Padre Tércio, acostumado a lidar com os espíritos da vida e seres da morte. Elevou seu pensamento em oração e prometeu ao morto que faria um novo ritual sagrado. Dessa vez, não de corpo, mas de alma presente. 

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Dizem que, quando o corpo morre, a alma não o abandona imediatamente. Há um tempo – incontável pelos relógios humanos – entre a morte corpórea e o prosseguimento da alma. As almas também têm um destino e uma função. Algumas se perdem no caminho; outras são capturadas, sempre para fins malignos. Capturar uma alma quando ela se desprega do corpo, mas ainda não se preparou para seguir viagem ou escolher seu destino é uma das formas mais cruéis de cativeiro. Uma alma escrava nunca reencarna, nunca tem paz, nunca entra em contato com os que amou, nunca volta à origem de todas as coisas. Não vai ao encontro da Criação. 

Catadores gostavam das almas das pessoas comuns. Mais fáceis de capturar, já que as das pessoas iluminadas – pelo tamanho de seu coração, pelo bem que espalharam ou por sua inocência – eram inalcançáveis para eles. As almas que, ao desencarnarem, escolhiam, por conta própria, servir ao Senhor dos Infernos, não precisavam ser capturadas. Essas já tinham dono e destino traçado. 

Catadores de almas sempre moravam afastados ou escondidos.
De preferência em lugares pouco convidativos.
Há catadores de almas da espécie humana. Um ser que pode chegar a centenas de anos, envelhecendo em algum subterrâneo, porão, casas antigas ou abandonadas. Envelhecem lentamente, o corpo decaindo pouco a pouco, em um ritmo bem menor que o dos seres humanos normais. Sabe aquela velhinha de aparência nonagenária que você viu numa aldeia ou cidadezinha? De quem ninguém sabe mais sequer dizer há quanto tempo está ali, só que é longeva o suficiente para ter enterrado gerações? Ela pode ser uma catadora de almas. 

Ela pode vender almas para ganhar mais alguns anos de vida, mesmo decrépitos. Pode escravizá-las para atender chamados de magia negra e lucrar muito com isso. Ou sorvê-las para viver a vida que elas tiveram enquanto encarnadas. Saber de seus segredos. Alimentar-se com seu medo e dor. 

Seres dotados de poderes extraordinários, egoístas e sórdidos. Perigosos, ardilosos, insensíveis Os psicopatas do Além. 

No Grande Equilíbrio do Universo, porém, um predador não tem poderes absolutos. Todo caçador pode, um dia, virar caça. E com os catadores de almas não era diferente.  

Anjos, de modo geral, e alguns humanos, particularmente, podiam não só pressenti-los como, também, caçá-los, combatê-los e... abatê-los.

Padre Tércio era um desses. 

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Seu chamado vocacional surgiu quando ainda bem jovem. E seus poderes mediúnicos também. Com o tempo, aprendeu que existiam muitas formas de vida nesse planeta.  Grande parte invisível ou desconhecida pelo comum dos mortais – que, no entanto, sofrem sua influência benigna ou maligna. Mas ele não era um mortal comum.

Nem ele nem seus amigos, combatentes do Equilíbrio da Luz. 

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Aquela caçada pela alma do finado seria, além de estafante, perigosa. Deveriam salvá-la e encaminhá-la o quanto antes, pois a alma vai definhando, perdendo a identidade, como um pássaro engaiolado por tempo demais que não consegue voar. Uma alma perdida.

A velhice e o cansaço de quem já vira coisas demais nessa vida não tiraram a argúcia e o ímpeto pela justiça de Padre Tércio. Nem bem se despediu da família do morto, ligou para a pessoa em que ele mais confiava para trazer a alma roubada de volta. 

Lucrécio Lucas era seu nome.

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Continua dia 24 de julho.

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Outras aventuras de Lucrécio Lucas, algumas com a presença de Padre Tércio.

Os Caçadores - um dia da caça, outro do caçador. 

I Maledetti - todos malditos: vítimas e algozes

O Gato - parte 1 - nem durante as férias ele descansa

O Gato - parte 2 - mas a vida e a morte são assim mesmo

Caçadas noite adentro - nem tudo é o que parece; aliás, nada é o que parece

Viúva Negra - nem sempre o mau se dá mal

A Amante - a origem do nome do Lucrécio Lucas

A hora dos mortos - parte 1 - quando uma Alma pede ajuda

A hora dos mortos - parte 2 - quando a Alma recebe a ajuda.

Comentários

E lá vamos nós a espera da Parte II! Boa Caçada, Padre Tércio!
Marcio disse…
Breve resumo dos meus pensamentos, durante o dia de hoje:

- 08h00:"Oba! Hoje tem texto novo da Zoraya! Tomara que eu tenha um insight bem escrotinho, para escrever um comentário extremamente cretino."

- 11h41: "Que texto incrível! No primeiro parágrafo, já tava lá um corpo estendido no chão!* Epa! Mas é só a primeira parte! Como vou suportar essa ansiedade pelo final, por duas semanas? Quem mandou estabelecer para mim mesmo a regra de não comentar textos ainda não concluídos?"

- 14h37 (em projeção, pois ainda são 11h49): "Puxa vida, ainda faltam cerca de 1.200.000 segundos até a publicação da segunda parte do texto da Zoraya... Ela consegue ser mais cruel que seus vilões..."

* Segundo dados atualizados do IBGE, a mortalidade média dos personagens do universo literário zorayal é de uma morte a cada seis parágrafos, aí computadas todas as causas. O texto de hoje, portanto, eleva essa média.
branco disse…
vou aguardar a 2ª parte. a primeira promete muitas coisas.......
Clarisse Pacheco disse…
Saudades de Lucrécio Lucas!
Érica disse…
Uau! Lucrécio Lucas e o padre Tércio na mesma história era uma mistura inesperada. Curiosa para ver o desfecho!
Albir disse…
Vírus, desgoverno, milícia, bala perdida e agora psicopatas do além. Ou seja, nem a morte dá sossego.
Ansioso aqui
para continuar vivo por mais 15 dias e ler a segunda parte.
Clara Braga disse…
Que venha a continuação! Aguardo ansiosa!
Carla Dias disse…
Ainda bem que só li agora a primeira parte, vou poder ler a segunda e sofrer somente com a espera da terceira.

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