I MALEDETTI >> Zoraya Cesar

Toda vestida de preto, a velha caminhava lentamente, olhando para baixo, não se sabe se preocupada com as armadilhas fatais das calçadas esburacadas, ou se as costas curvadas não a deixavam andar de outro modo.

Colo, mãos e rosto engelhados e cinzas como o pescoço de um urubu, ela caminhava lenta e resolutamente, por bares, lojas e pessoas, quase que totalmente despercebida, apesar da aparência extravagante. Ou porque na azáfama do dia ninguém a via mesmo ou porque, se a viam, afastavam rapidamente o pensamento e o olhar, como pressentindo algo de pestilento e mortal na sua presença. Um grupo de pivetes passou arrancando algumas bolsas, colares, relógios, e uma das meninas ainda cobiçou a pequena sacola roxa que a velha carregava na mão descarnada, mas preferiu assaltar outra vítima.

Caminhava, clapt, clapt. Caminhava sem parar e assim foi até o entardecer, quando chegou, finalmente, ao seu destino, pouco antes de fecharem as portas.

O funcionário baixou os olhos quando ela atravessou a guarita — se por acaso, ou por já acostumado àquela visita sempre na lua nova, não sabemos. O fato é que ela passou e, no instante seguinte, os portões fecharam ao público externo. A partir daquele momento, o lugar pertencia aos condôminos vitalícios — se é que tal palavra se aplica ao caso —, aos visitantes que escaparam à vigilância e se esconderam durante o dia, aos que pulavam o muro após o anoitecer e aos poucos que, como a velha, tinham a entrada franqueada.

Ela continuou caminhando, indiferente ao vento frio e à escuridão — sabia exatamente por onde andar para chegar onde queria — um tanto ansiosa, talvez, por prosseguir à sua missão.  

Passou pelo grupo de jovens vestidos, como ela, de negro. Passou pelo homem que batia no peito e gritava de dor e saudade. Passou pelo ladrão que procurava algo de valor. Ninguém prestou atenção a ela e a ninguém prestou ela atenção. 

Quando, finalmente, chegou ao seu destino, ficou ali, parada alguns minutos, talvez tomando fôlego, a noite era longa e ela já não era criança. 

Sentou-se ao lado do túmulo do marido, tirou da bolsa uma foto amarelecida pelo uso, um homem de ar severo e orgulhoso, bonito com sua brilhantina no cabelo e fartos bigodes castanhos. Tirou da bolsa, também, agulhas de tricô, um novelo de linha preta, uma vela da mesma cor. Acendeu-a, apoiou a foto na lápide e começou a fiar. A cada ponto, uma estrofe de uma estranha reza de esconjuros e maldições. 

E assim ficou a noite inteira, e, pouco antes que os primeiros raios de Sol ameaçassem a escuridão, ela, ainda esconjurando, amarrou toda a rede em nós inquebrantáveis e enterrou-a junto à lápide. Antes mesmo de o bem-te-vi soltar seu primeiro gorjeio, ela já estava indo na direção da saída. 

Todo mês, na Lua Nova, a velha praticava aquela antiquíssima magia italiana, para prender a alma do finado marido no limbo sem luz, onde ele seria torturado pelas agruras do inferno, sem nunca ter paz, assombrando o mundo dos vivos com aparições e obsessões terríveis, que já levara à loucura mais de um inocente que nada tinha a ver com a história. 

A história? Um marido cruel que perpetrou todo tipo de maldade contra a esposa. Uma esposa que, após a morte dele, não mandou rezar sequer uma missa, mas dedicou sua vida a vingar-se, prendendo a alma do finado eternamente no mundo sem luz. Nenhum dos dois teria salvação. Ele, por não ser perdoado; ela, por não perdoar. I Maledetti — os malditos. Condenados, ambos, à danação eterna. 

Duas almas malditas, dois seres trevosos, duas vezes perigosos: ele, por assombrar o mundo dos vivos; ela, o dos mortos. Todos dois se comprazendo em fazer o que faziam, pouco se importando com as consequências de seus atos na vida de outras pessoas ou com o equilíbrio das Forças, pois, quanto mais seres das trevas existem, pior para ambos os mundos. Assim na terra como no céu. 

Longe dali, Lucrécio Lucas sentiu vontade de dar uma batida no cemitério, ver o que andava acontecendo, ajudar algumas almas, combater outras, limpar o lugar para que este continuasse a ser um solo sagrado. 

Convidaria seu grande amigo, o maior exorcista do país, um dos dez mais do Vaticano. Padre Tércio detestava sair no frio, mas não resistiria a uma dose de um legítimo Sheridan’s de café, seguido de um Bom Combate.

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Comentários

ai, Zô, liberta essas alminhas que o inferno já tá cheio e haja luz para clarear nossos horizontes!


beijos de luz!
Erica disse…
Putz... Eu consegui até "ver" o "urubu" andando até o cemitério e tecendo a rede de nós, tal perfeição na descrição dos detalhes rs Mas que alma mais perturbada... aliás, tanto a do homem morto, quanto a da mulher que, embora ainda viva, também padecia nas trevas... Pior que tem gente que é assim mesmo...prefere o sabor da vingança (se é que isso pode ter "gosto" bom) do que se libertar da escuridão... Sinistra... a crônica e você, né, Zô? Vê se dá próxima dá uma "clareada" nas ideias rsrsrs Bjs
aretuza disse…
só quero ver se vai ter a continuação!! e vai que eal matou o marido e vai ter que entrar em cena também o Felipe Espada!
André Ferrer disse…
Inferno! Tocaram no assunto. Lá vai um subtítulo bastante eloquente: "Plano fechado num quadro de Bosch". Excelente Zoraya!
Unknown disse…
qual seu e-mail que quero enviar as cronicas de uma amiga
albir disse…
Zoraya,
temo que sua velhinha rancorosa venha lançar moda, e viúvas que jamais pegaram numa agulha comecem uma peregrinação aos cemitérios para fustigar seus pobres maridos.

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