A HORA DOS MORTOS - 1a parte >> Zoraya Cesar

Era madrugada quando ele, das profundezas do sono, sentiu a cama sacudir e tremer fortemente, como se quisesse jogá-lo para fora. Cansado, crendo se tratar apenas de um sonho por demais realista, decidiu, em sua semiconsciência, permanecer de olhos fechados e tentar voltar ao Reino de Hypnos. 

A cama, porém, não desistiu de acordá-lo e a ela juntaram-se as portas do armário, que batiam estrepitosamente; as cortinas esvoaçavam, flap-flap, flap-flap, como asas de um pássaro frenético batendo, agoniado, dentro de uma gaiola apertada; sombras e luzes dançavam nas paredes ao som de alguma música inaudível, formando estranhas figuras que se transformavam e se fundiam umas nas outras, como um quadro vivo de Escher.

Convencido, enfim, de que aquela agitação toda era bastante real, e nauseado pelo tremor da cama, Lucrécio Lucas abriu os olhos, agora bem desperto e atento.

Imediatamente, tudo se aquietou. Um silêncio escuro e denso tomou conta do ambiente. Mas que droga, pensou. Será que não fechei os portais corretamente? Esqueci de bloquear todas as fendas astrais? Tô ficando descuidado?

Sentou-se e repassou, mentalmente, os rituais que fizera antes de deitar. Não viu falhas. Se os fenômenos cinéticos pararam e eu não fui atacado diretamente, nada penetrou nas defesas da casa. Olhou o relógio. 

Três horas da manhã. 
A Hora Morta. A Hora do Diabo.  A Hora dos Mortos.


Lucrècio Lucas custou a despertar de um sono profundo e bom.
Seu inconsciente viajava, descansado, até ser bruscamente despertado.
A hora da plena atividade do mundo espiritual, na qual demônios menores (mas não menos perniciosos) e magos negros praticavam seus ataques espirituais mais letais. A hora em que Anjos e Guardiões estão mais ocupados, e, os médiuns, mais vulneráveis, se dormindo, ou mais fortes, se acordados. 

Ele concluiu que, devido à hora e ao fato de nada ter sofrido, só podia ser uma coisa: uma força astral extraordinária - de um ser que nunca tivera forma corpórea ou de um espírito humano que já vivera sobre a Terra - tentara entrar em contato. 

Lucrécio Lucas resmungou. Preferia enfrentar feiticeiros vodus, vampiros, demônios e assassinos astrais, qualquer coisa, a lidar com gente morta. Mesmo que fossem entes queridos. “Deixe que os mortos enterrem seus mortos”, vivia dizendo seu velho amigo Padre Tércio, e Lucrécio não poderia concordar mais. No entanto, o quanto antes ele soubesse do que se tratava, melhor. 

Pegou o copo de água (que sorte não ter derramado) e o terço que sempre ficavam ao lado da cama. Rezou sobre a água e bebeu-a, acalmando seu coração ainda acelerado pelo susto do despertar abrupto e inusitado. 

E (no mundo dos espíritos não existem coincidências), sendo aquela também a hora em que, pela Medicina Tradicional Chinesa, a energia Chi dos pulmões está no seu ápice, ele resolveu meditar, a fim de captar, com clareza, o que estava acontecendo. “A respiração é a base da meditação”, dizia a Sra. Majo ao menino Lucrécio Lucas tantos anos atrás.

Inspire profunda e lentamente. Expire... ele ouviu, em sua mente, a voz doce e firme da Sra. Majo a ensinar-lhe os segredos da yoga e da mística zen budista - incluindo a exortação, o controle e o combate aos demônios - quando ele tinha apenas oito anos. Oito. O número do equilíbrio cósmico. Do milagre da Ressurreição. Para os japoneses, o mais perfeito número da sorte. 

A Sra. Majo. Uma senhorinha frágil, de pele macia, cujo rosto, de tão engelhado, parecia um papel de arroz amassado por uma criança travessa. Seus olhos puxados e miúdos brilhavam como diamantes, negros e impressionantes. 

Tradicionalista ao extremo, praticava os rituais japoneses com rigor, encantando o menino Lucrécio com suas histórias. Mesmo criança, ele já pressentia nela um mistério sobrenatural.

E não estava enganado. 

Descendente de uma antiquíssima e poderosa linhagem de feiticeiras Kitsune, a Sra. Majo fugiu à perseguição de um rival temível e cruel. Escondeu-se na pequena cidade de Lucrécio Lucas, trabalhando como florista, e, reconhecendo nele um ocultista em potencial, nem se preocupou em saber qual lado do Caminho ele escolheria mais tarde. Tinha o dever cármico de passar adiante seus conhecimentos. Só. Sem julgamentos. 

E, se pareço tergiversar, peço desculpas. Mas a Sra. Majo é parte integrante de todos esses acontecimentos, como logo veremos. 

Lucrécio Lucas entrou numa espécie de transe mediúnico dentro da meditação, abrindo-se para ver o que precisava ser visto. E o que viu não foi agradável. 

Um espectro manchado de sangue pairava em sua mente. Os dedos ossudos rasgavam as vestes à altura do peito, em desespero. Tentava falar, mas nenhum som saía de sua boca escancarada, qual um buraco negro. O rosto, irreconhecível, retorcia-se de angústia.  

Ainda assim, ele soube, com indiscutível certeza, do que se tratava. A Sra. Majo, morta há vários anos, presa no Waru, o Labirinto do Terror, pedia sua ajuda. 

Continua dia 2 de março

Outras aventuras de Lucrécio Lucas

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I Maledetti - todos malditos: vítimas e algozes

O Gato - parte 1 - nem durante as férias ele descansa

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Foto: kjpargeter / Freepik  - https://br.freepik.com/index.php?goto=74&idfoto=1807379

'Deixe que os mortos enterrem seus mortos" - MT 8,22


Comentários

Marcio disse…
Outra noite me aconteceu algo parecido.
Suspeito do prato de frutos do mar que eu comi.
Mas não tem nada, não. Com um pouco de repouso e hidratação, o Lucrécio voltará em breve à perfeita saúde.
não, não, não!!!!! não posso aguardar até lá, preciso saber o que vai acontecer!!!!!
Anônimo disse…
Fisgou a gente essa história do Lucrécio!!!!
Anônimo disse…
Que incrível este texto, me identifiquei pelo lado oriental, estudei medicina chinesa, tenho um filho chamado Lucas e que várias vezes se comportou e se comporta até hoje como se fosse um discípulo meu������
Adorei!!

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