PODE PARECER QUE NÃO, MAS SIM... >> Carla Dias >>
Escreveu um samba-canção inspirado no gosto dela pelas palavras. Construiu aquela casa, com aquele quintal bonito que só, para que pudessem comemorar aniversários e eclipses. Onde os amigos chegam hoje e só vão embora amanhã, forçados pela segunda-feira que será no depois de amanhã.
Caso contrário, continuariam ali: prosa correndo solta. Gargalhadas até na hora em que encaram tristezas.
Escreveu um manifesto sobre benquerenças e revides. Sempre se sentiu desafiado a explicar o inexplicável. Claro que, nem sempre, chegava a algum lugar. Mas adorava o olhar dela dedicado a observá-lo, enquanto o pobre tentava descomplicar o que nasceu para ser complicado. Não sabe ser diferente. Nem vai tentar ser diferente. Tem jeito, não.
Há sim o que não tem jeito. Melhor aceitar o fato.
De tudo que conheceram juntos, jamais se esquecerá daquela cafeteria, que fica em uma cidade da qual ele não consegue pronunciar o nome. Lugar bonito, de tão singelo. Que ela gosta dessa coisa de aconchego oferecido pelo rústico, alternativo. Coloque flores em garrafas de vinho, espalhe perfumes e cores. Ela gosta de cores e não se sente à vontade em ambientes planejados para serem caixinhas cinzas a receberem espíritos submissos. Para ela é assim... Não tem cor por fora, ainda que pela sutileza dos tons, no dentro as coisas desabam.
Claro que nem tudo são flores em garrafas de vinho, perfumes e cores. Ela é boa de briga, demanda paciência, quando dá de frequentar seus medos e selvagerias.
Quem não os têm?
Porém, ela gosta de amplificá-los, valendo-se de uma dramaticidade digna de Oscar ao botá-los para fora. Ele se cala diante dos rompantes dela. Eles não são bonitos, mas são dela. São ela. Ele não tem o poder de pacificá-los, já que a própria aprecia cultivá-los e valer-se deles quando arrebatada por certa agonia existencial.
Então, ela se isola, distancia-se dele. Refugia-se no quintal, na estufa que ele construiu para se cultivar as flores que a fazem sorrir tão bonito. Onde ela rumina a infelicidade dos traumas.
Há dias em que ela não vê beleza no fôlego, no toque, na perseverança de se sobreviver aos infortúnios. E que se aprofunda na busca pelo bálsamo, mas de maneira tão dolente, que alcançá-lo nunca é o objetivo. Compreender a necessidade dele é o que a aflige. Como quem não se importa com a cura, mas com uma boa explicação sobre o motivo de sofrer daquilo.
Às vezes, os amigos preferem não frequentar aquele quintal, passar o fim de semana, fiarem-se em conversas. Eles se sentem constrangidos com a incapacidade de lidarem com ela, assim, desconectada deles, como se não conhecessem. E ele sabe que isso é algo que nem todos conseguem fazer.
Ele não é melhor do que ela, apenas mais paciente em relação aos desmandos da vida. Compreende que todos sofremos de tragédias, e que, sim, algumas são avassaladoras e nos roubam afetos e alegrias. Mas o que mais ele poderia fazer a não ser continuar vivendo e apreciando a jornada? Lidando com os incômodos? Cuidando dela, para quem ele compôs um samba-canção. Para quem construiu uma casa com quintal e estufa. Quem entende que eles são diferentes, e que essas diferenças se tornaram a capacidade deles de entendimento.
Ah, não entristeçam com o destino dele... Ter de cuidar de quem nem sempre se lembra do amor que norteia a existência de ambos. Que vai se esquecendo, cada dia um pouco, de quem se tornou na companhia do outro.
Pode parecer que não, mas sim... Essa é uma carta de amor.
Imagem: The Ballad © Henry Lejeune
carladias.com
Comentários
Escrita sempre afinada. Que bom!
Abraços,
Enio