SÁBADO DE CARNAVAL >> Zoraya Cesar

Noite de sábado. Carnaval. Galeria de arte. 

Tal combinação pode parecer estranha, mas essa é uma cidade onde coisas estranhas acontecem. Pois em plena noite de sábado de carnaval diversas pessoas circulavam com intimidade e desenvoltura por entre os quadros pintados pela celebrity da vez, nova rica no auge de seus 15 minutos de fama. 

Um homem elegante olhava cinicamente os quadros da pretensa artista. Alexandre não diria que seu filho de cinco anos faria melhor, nem que um macaco poderia tê-los pintado. Primeiro, porque não tinha filhos; depois, porque, conhecedor de arte que era, sabia que, efetivamente, um macaco pintaria melhor. 

Pegou o copo de whisky oferecido por um garçom indiferente e distante. Deu um único e último gole. Tinha gosto de mijo com suor. Deve ter sido feito no fundo de um quintal durante a lei seca, pensou, a garganta queimando. Temendo adquirir cirrose caso as outras bebidas tivessem igual qualidade, optou por um copo de água. Teve a impressão de que saíra de uma bica suja e enferrujada. Decidiu não beber mais nada. Melhor morrer sedento que envenenado.

O som ambiente era torturado pela música - uma espécie de techno-lounge com decibéis a mais e qualidade de menos – e pela garrulice estridente de uns e risadas altissonantes de outros. 

Cansado de fingir interesse por aquelas pinturas horrendas, que, sabia, dar-lhe-iam pesadelos, dedicou-se a observar os convidados.

A mulher bonita e esquelética, de cabelos lisos e vestido vermelho decotado até o limite do bom gosto, jogava charme para um homem alto de barba escura e cerrada, que, sem lhe dar atenção, paquerava outras mulheres.

As outras mulheres... cópias quase fieis da modelo de vestido vermelho e semblante triste. Todas sorrindo com a boca escancarada, mostrando seus dentes perfeitos; todas fingindo alegria desmedida; todas vestidas para seduzir. Uma jovem de ar cansado, tez emaciada e pálida, mal disfarçada pela maquiagem, olhava-se constantemente no espelho, como se a verificar que ainda ela estava ali, que era real, e não, assim como os outros, uma ilusão.

Alguns rapazes pavoneavam-se pelo salão, tentando impressionar a anfitriã, conhecida devoradora de frangotes, ou arranjar alguém para o sexo da madrugada. Dois homens estavam, obviamente, dividindo a mesma escort girl, uma moça mal saída da adolescência, que ainda estava aprendendo a representar seu papel de prostituta disfarçada de amiga. Constrangedor. Alexandre teve vontade de agarrá-la, sacudi-la e jogá-la porta afora, gritando ‘fuja, fuja antes que seja tarde’. Mas ele sabia que já era tarde. 

Sua esposa aproximou-se. Amiga da celebrity, e, também ela, um engodo. Cheia de silicone nos seios e nos glúteos, de botox no rosto e de vaidade na cabeça. Há muito não era uma pessoa, mas uma persona: a mulher aristocrática e arrogante que só fazia sexo movida a cocaína. Não nutria sentimentos por nada que não tivesse grife ou pedigree.

Eu também, pensou, desgostoso, sou fake. Uma farsa infeliz. Casado com uma mulher que não amava há mais tempo do que podia lembrar. Diretor de um escritório que ajudava clientes a lavar dinheiro e a escapar do Fisco. Morando numa cidade que odiava, cercado por pessoas que viviam de aparências. 

Afetação. Falsidade. Arrogância. Ignorância. Solidão. Mentiras. Adulação. Sempre detestara tudo isso. O que estou fazendo, afinal?

Aqui só tem gente morta, inclusive eu. Deus, o que estou fazendo? Me diz! É sábado. Carnaval. E eu, um morto entre os mortos.

Ele vê, entre os presentes, nesse momento, uma mulher para a qual não há outro adjetivo que não o mais simples: feia. Seu rosto parecia um dos quadros da mostra, uma mistura de cara de cavalo com escovão de cozinha. Estava até bem vestida, mas destoava do ambiente fashion. Tinha o olhar assustado de quem entrara na festa por engano, numa festa para a qual jamais seria convidada - se não fosse prima da artista... 

Alexandre cruzou o salão em sua direção, agarrou-a e beijou-a lascivamente, língua com língua, pélvis contra pélvis.

Ela não rejeitou a abordagem selvagem e retribuiu com o mesmo vigor. Era carnaval, tudo era possível, até ser agarrada pelo homem mais bonito que já vira. 

O tempo parou, ninguém se mexia, sequer respirava. Apenas a mulher de Alexandre, boquiaberta e atônita, escorregou pela parede até cair sentada, em choque. E os fotógrafos, claro, satisfeitos por terem, enfim, algo interessante para registrar.

Largando a estranha - não sem antes, homem educado que era, agradecer-lhe – voltou-se para a esposa: 

- Ela é mais bonita que esses quadros horrorosos. E mais verdadeira. Estou saindo. Não me espere antes de Quarta-Feira de Cinzas. – deu uma pausa e completou:

- Ela beija melhor que você.

E saiu, feliz por deixar para trás aquela farsa toda, livre, procurando um bloco de rua para se perder. Pela primeira vez, em anos, o homem lindo, rico e charmoso sentiu-se verdadeiramente vivo.



Não se liguem na letra. A mensagem está no filme. 
Solidão é o preço cobrado para quem vive de aparências, 
um preço alto, frustrante, exaustivo.

Dica de Carnaval: jogar fora a fantasia e viver na própria pele.

vídeo 

Rihanna - Love On The Brain [Video Unofficial]


Comentários

Anônimo disse…
Parece até o Rio de Janeiro! Hipocrisia por toda parte!
E de onde você tirou o vídeo?
Marcio disse…
Eu costumo associar o padrão Zoraya César de literatura à ficção.
Mas o texto está bem realista.
Bom Carnaval para todos, conforme o significado que cada um atribui a isso.
Anônimo disse…
Leitura suave e alegre, e a dica final melhor ainda!!!

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