CANÇÃO 2 DE 7 | TENHO SEDE >> Carla Dias >>
Quantos dias de falta? Uns setecentos e tantos, mas não importa. Talvez importe, mas ele não se importa com o tempo passado. A questão é o tempo esperado, que acredita, com a fidelidade dos ateus que se apegam aos santos - em noites em que a saudade parece ser capaz de rasgar carne, torcer nervos, amplificar zumbidos e expor, dramaticamente, a sua brutalidade em humilhar suas vítimas -, deve a ele uma explicação.
Por que se ausenta dele com o tempo rasgando o calendário? Por que lhe falta no silêncio de um absoluto que ele não consegue compreender de onde veio?
Não que a ausência que o aflige seja a pior do que a de outros. No entanto, é com ela que ele tem de lidar. É ela que tomou conta dele, que faz com que se levantar da cama seja um exercício longo e desencorajador. Com que exercer a pessoa que a biografia dele descreve seja um interpretar um papel com o qual ele não tem qualquer identificação.
O tempo esperado. Esse tempo que é amanhã e fere profundamente ao se tornar ontem. De deixar olhos arregalados durante noites infinitas. Que passa sem dar qualquer importância à sede dele.
Não é tão tolo assim. Sabe que a maioria das pessoas sente sede feito essa, que ele representa quase nada para o tempo, que o universo jamais irá conspirar para lhe dar de beber. Que as vezes em que a sede lhe resseca os lábios e lhe definha a esperança, que faz com que ele se sinta vazio de vazies indescritível, de nem mesmo poeta conseguir lidar, o tempo esperado se anuvia todo. E a sede ameaça de levá-lo junto para a aridez dos sentimentos.
Sabe que amor que some, sem deixar pistas, é porque já teve o que precisava do outro. Amor é suprimento para alguns, não alimento. E para eles é questão de consumir, enquanto sentem fome. Então, partem, deixando o outro com sua sede insaciável.
O que não sabe é como lidar com o tempo, com a rotina, com a pessoa que pensou que era, mas já não reconhece mais. Sabe que acontece com a maioria das pessoas, mas essa sede é dele, que se sente desapegado de si, como se assistisse a própria vida acontecendo, do sofá da sala. É ele quem tem de lidar com ela, a sede por sentir novamente o que sentia no tempo de antes, de quando reconhecia que nele havia algum valor.
Não é tão inocente assim. Sabe que morrerá de sede e teme renascer mais vazio do que se sente agora.
Comentários
Saudade de Dominguinhos.
Maxi, minha cara, que felicidade ler seu comentário. Obrigada e beijos!
Zoraya, a redundância tem sua lindeza. :) Beijos!
Albir, essa sede que a gente não mata no copo, né? Dominmguinhos... Saudade mesmo Beijo!