A MORTE DO GALO >>> Nádia Coldebella
A manhã despontou enevoada no horizonte. Logo o sol deixou tímidos raios de luz transpassarem as frestas dos morros que rodeavam o pequeno sítio. Um deles incidiu diretamente sobre a casca amarronzada de um ovo. A mãe-galinha zelosa acabara de se levantar para comer os grãos de milho que o homem havia lançado ao chão. Porém, como toda mãe, voltou correndo, a tempo de ver um delicado biquinho romper a casca do ovo.
Para o susto da galinha-choca, eclodiu repentinamente do ovo um pintinho branco e preto, muito feio, com olhos completamente esbugalhados. Apesar da aparência burlesca, ele contemplou a mãe com paixão fulgurante, certo do lugar que viria a assumir neste mundo: o de líder do galinheiro.
A mulher, que recolhia os ovos, chamou a criançada que corria por ali para ver os outros pintinhos que também nasciam. O fuzuê dos pequenos atraiu a atenção do homem, que precisou intervir antes que ocorresse algum desastre com as frágeis avezinhas. Não pode deixar de notar, porém, a aparência desengonçada do feioso pintinho recém-chegado ao mundo. Mesmo assim, por susto ou dó, não sei ao certo, afeiçoou-se imediatamente ao jovenzinho.
Os dias seguiram-se calmos. Enquanto o bichinho crescia, a feiura foi dando lugar a uma aparência estranha, que enchia de curiosidade o dono. Não era uma ave comum. Orgulhoso, viu o pintainho segui-lo por toda parte e, quando não estava com ele, estava atrás do velho galo, aprendendo os ossos do ofício.
O galinho acordava antes de o sol nascer. Ele via o velho galo subir sofregadamente no telhado, esticar o pescoço em direção ao céu e, depois de um profundo respirar, que elevava seu tórax, emitir um canto rouco e possante. O sol, no horizonte, logo despontava, atendendo ao seu chamado.
- Que ser poderoso é esse? - E, no seu íntimo, ele desejou que o velho galo batesse logo as botas. Ele queria aquele poder, queria herdar aquele destino.
A verdade é que o galo já era bem velho mesmo. Muitas penas faltavam em seu corpo, já não tinha algumas esporas e subia no telhado porque havia decorado o caminho: estava praticamente cego das duas vistas. E foi exatamente a cegueira que o impediu, certa manhã, após acordar o sol, de ver uma cobra coral que andava pelas redondezas, atrás dos ovos das galinhas.
O galinho, porém, a cobra aproximar-se e o senso de oportunidade fê-lo esperar três ou quatro segundos. Rapidamente arrependeu-se e passou a gritar alvoroçadamente, mas o alarme ecoou tarde. Quando o homem chegou, o velho e sábio galo já estava morto. A sede de vingança do galinheiro foi logo atendida pelo homem, que achou a cobra e matou-a com uma paulada na cabeça.
O galinho, porém, a cobra aproximar-se e o senso de oportunidade fê-lo esperar três ou quatro segundos. Rapidamente arrependeu-se e passou a gritar alvoroçadamente, mas o alarme ecoou tarde. Quando o homem chegou, o velho e sábio galo já estava morto. A sede de vingança do galinheiro foi logo atendida pelo homem, que achou a cobra e matou-a com uma paulada na cabeça.
- Você tentou - disse o homem, tocando de leve a cabeça da avezinha com uma mão e erguendo o corpo da cobra com a outra - mas ninguém pode com uma cobra coral.
Neste momento, qualquer resquício de culpa que o galinho possa ter sentido dissipou-se rapidamente. Afinal, ele fez o que pôde.
E então o galinho ocupou seu lugar de direito. Ele não era mais um galinho, ele era O Galo. Governaria com mão de ferro, faria o galinheiro sentir a dureza de suas esporas, a realeza de sua crista, a imponência de suas penas. Sentia-se forte e sua aparência estranha o enchia de poder.
- Sou único. - Assim pensava toda manhã, quando subia vigorosamente ao telhado para acordar o sol com seu estridente e desafinado grito. E enquanto o sol corria para chegar ao céu, todas as galinhas alarmavam-se e, dentro da casa, o homem acordava, sobressaltado e orgulhoso da sua ave-despertador.
Certo dia, porém, o galo atrasou-se. Não vêm ao caso os motivos, esses são particulares da ave, mas o fato é que quando acordou, o sol já ia alto no horizonte. Por sorte, o homem não tinha acordado e galo correu para o telhado. Ainda poderia mostrar quem mandava.
Nos dias que se seguiram ele não conseguiu negar para si mesmo o óbvio ululante. Já não andava de peito estufado por aí, alardeando seu poder. Ficava parado no terreiro, quieto a maior parte do tempo, de cabeça baixa. O homem preocupava-se com o amigo de penas, mas imerso nos afazeres do dia, logo esquecia da ave.
- Não posso mais viver assim - disse uma madrugada o galo para si mesmo. Consumido pela dúvida, decidiu não cantar naquele dia. Tinha a esperança de que o sol aguardaria seu chamado.
Não foi assim. O sol seguiu seu rumo, esfregando a verdade verdadeira em sua cara. Nenhum poder tinha o galo. E ele passou o dia ensimesmado, empoleirado e quieto.
No fim da tarde, o homem foi até ao galinheiro. Tentou animar o pobre bicho. O galo ainda levantou os olhos esbugalhados para ele, mas a incandescência havia desaparecido do seu olhar. E ele ficou lá inerte também no dia seguinte e no outro e no outro. Mergulhado cada vez mais fundo na inconsistência que encontrara em si mesmo e na culpa que agora despontava.
A vida, porém, precisa continuar. E o homem trouxe novo penoso ao galinheiro, para alvoroço das galinhas. Ele não cantava para o sol nascer, cantava para acordar o homem. E não pensava muito. Fazia o que tinha que fazer. Nada de especial nessa ave. Era como as outras, mas funcionava muito bem.
O galo não se importou. Ele agora definhava. Havia perdido o sentido da vida.
- Cantar por quê?
E ficou assim, lamentando sua triste sorte até a morte chegar.
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