A BOA SOGRA >> Zoraya Cesar
O rapaz caíra doente de repente. A prostração foi num crescendo até que passou a não reconhecer as pessoas ou a andar e comer sozinho, numa estranha e inexplicável inconsciência.
Os médicos desistiram, era mais uma daquelas doenças sem nome, sem lenço e sem documento que surgem do nada e desaparecem junto com a vida do desinfeliz.
Assim que o rapaz apresentou os primeiros sinais de decadência, sua mulher entrou em pânico, não estava acostumada a lidar com doenças. Monica chamou a doce sogrinha para morar com eles e ajudá-la a cuidar do acamado — remédios, alimentação, higiene, atenção e o que mais fosse. Esse acerto trazia duas grandes vantagens à Monica: a consciência tranquila de ver o marido bem cuidado; e a liberdade de viver a vida. Pois era jovem, bonita e rica. E, embora gostasse dele, não estava muito disposta a passar o resto da vida ao lado de um enfermo que sequer a reconhecia.
Decidiu esperar alguns poucos meses antes de se separar, ou pegaria mal, socialmente falando, abandonar o marido. Era tão bonito ver as amigas espalhando nas redes sociais que ela era um anjo, um amor, uma mulher e tanto por suportar aquela situação!
No entanto, os prazeres da carne despertaram e aquele negócio de ter um vegetal por marido estava começando a incomodá-la. Queria viajar, sair, transar, varar noites sem fim. E como fazer isso sem escandalizar a sogra, os porteiros, os amigos?
Se bem que, com a sogra, ela não se preocupava. D. Cotinha... ah, eu ainda não apresentei a sogra? Pois bem, eis D. Cotinha, magra, de tendões repuxados sob a pele ressecada e pintada de manchas senis, as mãos trêmulas, a aparência frágil, os olhos miúdos atrás das lentes grossas, o olhar cândido e conformado. Tratava a nora como uma deusa e nunca proferiu um lamento, uma recriminação, nada. Uma fofa. Com a sogra, portanto, ela não se preocupava.
Quando começou a se interessar por seu personal trainer, Monica resolveu dar um jeito naquela situação. Chamou a sogra para uma conversa de mulher para mulher. E disse, sem meios rodeios ou palavras cantadas que, em breve, daria entrada nos papeis de separação. Que era hora de D. Cotinha voltar para casa, levando o filho. E calou-se, esperando a reação.
Que não poderia ser mais terna e compreensiva. Deu-lhe toda a razão, afinal a nora era moça nova e bonita, tinha que aproveitar a vida, fora uma boa e paciente esposa, merecia seguir em frente. Monica sentiu-se aliviada ao extremo. E livre para viver sua vida.
Naquela noite mesmo, chegou de madrugada, bastante alcoolizada. D. Cotinha estava acordada, esperando por ela. Disse que estava quase tudo pronto para sua partida, agradeceu-lhe por todo o carinho com seu filho e perguntou se não poderiam beber um uísque de despedida.
Afagada em sua consciência e em seu ego, Monica aceitou a bebida oferecida pela sogra. Aceitou, bebeu e caiu numa estranha letargia, talvez por conta da noitada, talvez pelo excesso de álcool. Talvez.
Entorpecida, mal notou que D. Cotinha a arrastava até a piscina. Ainda sentiu o baque do mergulho e o choque da água gelada, mas não teve forças para subir à tona, com as mãos fortes da sogra empurrando sua cabeça para baixo.
D. Cotinha deixou o corpo boiando na piscina, voltou à casa e bebeu seu uísque, limpo do poderoso sonífero que oferecera à nora. A polícia concluiria que a jovem, bêbada, ingerira o sonífero e fora para a piscina, ali desmaiando e ali morrendo. Um terrível acidente.
Pobre Monica, sorriu D. Cotinha, que tola foi você, querida, tão rica e tão ingênua. Manipulei você e meu filho desde o início do namoro para que vocês se casassem, você e meu filho tão forte, tão bonito, tão sexy e tão vazio quanto você, norinha querida.
Meu filho vai herdar seu dinheiro, Monica. Aí decidirei o que fazer. Se paro de trocar os remédios e o tiro desse estado em que eu mesma o coloquei. Ou não tiro. A lei me instituirá sua curadora legal, e passo a administrar todos os bens. Ou se deixo morrer esse filho ingrato, que seria bem capaz de me passar a perna. Mas, de qualquer maneira, ficarei com toda sua fortuna, queridinha, conforme planejei desde a primeira vez em que os vi juntos.
A polícia concluiu conforme planejara D. Cotinha que, de sua piscina, fazia planos.
O caso, no entanto ainda não fechara.
Em seu apartamento, Felipe Espada examinava a papelada e as fotos do inquérito. Olhava, olhava, tentando encontrar o que lhe causara estranhamento ao ver o corpo na cena do crime.
Finalmente. Os calcanhares da morta. Os calcanhares da morta estavam arranhados como se tivessem sido arrastados no cimento. Ou na ardósia, pensou. Dinheiro, concluiu ele. Se fosse chegado a apostas, apostaria seu distintivo que fora assassinato, e assassinato por dinheiro. Jamais confiou em velhinhas fofas.
Preparou-se para agir. Se havia algo que Felipe Espada detestava, era ver um assassino impune...
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Comentários
Zô, vc é fantástica, tenho um caso de amor com Felipe Espada, vc sabe, rs... Com ele, o criminoso não escapa impune! /tem que soltar ele na lava jato, rs...
Todo crime não é perfeito, apenas mal investigado. A velhinha deveria ter colocado meias na "candidata a defunta", antes de arrasta-la!
Aqui, talvez por falta de crimes a investigar, esse laudo cadavérico estaria impresso em papel higiênico reciclado, o que comprometeria severamente as imagens fotográficas que despertaram a curiosidade do desocupado detetive.
Mas se o filho herdou, a sogra não precisaria herdar nada da nora! herdaria diretamente do filho.