O CORAL >> Zoraya Cesar

A vida de Pedro não era das mais fáceis ou alegres. Tímido, era alvo fácil para temperamentos despóticos. E temperamentos despóticos não faltavam em sua vida. 

Começando pela mulher, uma jararaca desleixada que lhe aplicara o falso golpe da barriga só para poder sair do subúrbio onde morava. A casa vivia imunda, as refeições se restringiam a arroz e feijão. E olhe lá. Pedro não podia falar nada que ela lhe gritava os maiores desaforos, bem alto, para constrangê-lo perante os vizinhos.  Quando estava de bom humor até que o tratava melhor, então Pedro ia ficando.

Despóticos também os havia no trabalho. A diretora, uma criatura ainda mais irascível que a esposa, não perdia oportunidade de humilhá-lo. Os colegas, para não ficarem mal com a chefe, ou o ignoravam ou abusavam de sua timidez. Mas o salário era bom, o emprego era público, então Pedro ia ficando.

Levava quase duas horas para ir ao trabalho e dele voltar. Almoçava e jantava todo dia o mesmo arroz com feijão, às vezes acompanhado de uma carne assada comprada no bar da esquina. O lar era frio. O trabalho, um sacrifício. Não tinha amigos. Não tinha perspectivas. 

Só tinha uma coisa que o salvava do tédio mortal. Era tocar e ensaiar no coral da igreja. Ele tocava bem o violão que acompanhava sua voz encorpada e profunda. Somente ali encontrava alegria, era seu único motivo de orgulho. Dedicava-se a esse mister com mais afinco e amor que a qualquer outra coisa na vida.

Por isso quase desmaiou quando lhe comunicaram que, doravante, a honorabilíssima mãezinha do não menos honorável presbítero o acompanharia nos vocais. A respeitável genitora estava deprimida, precisava ter uma atividade lúdica, segundo o psiquiatra. E o principal dirigente daquela comunidade religiosa tinha certeza de contar com a boa vontade de Pedro em ensaiar sua querida mãezinha. 

A tal mãezinha era insuportável. Rabugenta, ignorante e, pior que tudo, para horror de Pedro, mais desafinada que uma hiena. A dona daquele peito muxibento em que sequer batia um coração acreditava ter uma voz lindíssima, que só precisava ser educada, e para isso Pedro estava ali, para dar um jeito.

Mas jeito não havia. Além de obtusa, a velhota era musicalmente surda, não diferenciava um dobre de finados de um allegro, os instrumentos iam para um lado, a voz dela ia para outro. Era teimosa também, recusava-se terminantemente a seguir as instruções de Pedro, que começava a sentir um desespero doentio. Sempre que a estrofe da música chegava ao fim, a digníssima progenitora do não menos digno ministro cismava em estender as notas, num ahhhh lá lá laaaaaaaaaaá que mais parecia o canto do cisne esganado e refogado. Alguns componentes do coral começaram a inventar doenças e compromissos inadiáveis. Pedro passou a tomar calmantes. Via seu refúgio, sua razão de viver, desmoronar a cada gorjeio dado pela indefectível velha, que jamais faltava aos ensaios.

Chegou o dia da grande apresentação, no principal culto da semana, no qual a respeitabilíssima progenitora do não menos respeitável pastor acompanharia o violão de Pedro. Nosso desventurado protagonista suava frio, e não suava em vão. A velha, entusiasmada com a ocasião, desafinou mais que o normal, trinou como um sabiá estertorando, solfejou arquejante, gorgolejou, racharia cristais se lá os houvesse. Um desastre. Para a audiência, que a tudo ouvia com cara de quando-isso-vai-acabar-pelo-amor-de-Deus; para Pedro que, pensava, nunca mais seria chamado para cantar nem em enterro de surdos, que dirá ensaiar em um coral; um desastre para todos, menos para a nobilíssima mãezinha e para seu não menos nobre filho. 

O culto, finalmente, terminou, quase junto com o controle de Pedro. Mais um pouco e ele arrebentaria o violão na cabeça daquela desgraçada que, dia a dia, arruinava a única coisa lhe dava um sentido na vida
Pedro correu para os fundos da igreja, precisava se esconder, precisava sumir, precisava morrer. 

Mais tarde, naquela noite mesmo, alguns fieis ligaram para contar a grande tragédia que abalara os alicerces do templo: a vetustíssima mãe do bem menos vetusto ministro rolara da escada e morrera. Ninguém a viu cair, um acidente, disseram. Culpa da forte emoção misturada com os remédios contra depressão, garantiam. Pelo menos morrera feliz, lamentava o inconsolável filho.

Pedro desligou, sorriu, e perguntou à mulher pelo jantar. Ela, como sempre, respondeu-lhe atravessado. Como sempre, Pedro abaixou a cabeça e... Não. Dessa vez ele a empurrou para a cozinha e repetiu, ameaçador: "Quero o meu jantar". Ela serviu. No dia seguinte encarou a chefe abusada e enquadrou os colegas folgados.

Ele vencera a velhota dos infernos, a desafinada de belzebu, a desmancha-corais do Estige, a estraga-ensaios da peste. Ele venceria qualquer um. 

(Venceria qualquer um, menos, talvez, Felipe Espada, veterano investigador da polícia que achou muito estranho o corpo não ter marcas características de quem rolara escada abaixo, como se o corpo tivesse voado do alto dos degraus direto ao chão.  Muito, muito estranho mesmo.)

Comentários

Erica disse…
Me senti uma desalmada mas não pude conter a gargalhada... a Serial Killer criou mais um serial killer!!! Zozo você tem que começar a escrever roteiros para o Criminal Minds kkk
Criminal Minds é muito bom, mas não chega aos pés da desfaçatez dos vilões da Zô, na verdade são todos vítimas da humanidade mais primitiva que habita em todos nós...

sabe aquele colega de trabalho que senta todos os dias ao seu lado de olho na sua produtividade, aquele cunhado que te visita e olha comprido pra sua tv nova ou aquela vizinha que puxa papo com o seu marido na fila da padaria?

tsc-tsc-tsc... são todos perigosíssimos futuros protagonistas da Zô... ai, meu Deus! e nós também!!!!

kkk! bj!
Cristiana Moura disse…
Uma beleza a triste história de Pedro!
aretuza disse…
aha! então esse tem que ter continuação, e já!
albir disse…
Acho que ele vai continuar afastando os outros déspotas.

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