DISTRAÇÕES | 2 DE 3 | ELA >> Carla Dias >>

DISTRAÇÕES | 1 DE 3 | ELE



Muito acontece ao seu redor. Nada tem realmente a ver com ela. Tudo a influencia, pouco lhe cabe.

Sacode o casaco, que pela manhã era inverno, mas agora: verão.

As pessoas a observam, talvez por ela atrapalhar a passagem, o que desperta efêmera curiosidade. Alguns comentarão a respeito com os colegas de trabalho: que doida! Naquele chão imundo! Como se tivessem presenciado o mais profano dos pecados.

Ela acredita que alguns pecados fazem bem à saúde.

A irmã anda inconformada. Suplicou para que ela se consultasse com um psiquiatra bem-apessoado, rico e, de quebra, ótimo profissional. Ela declinou, com toda amabilidade, alegando que psiquiatra é o tipo de bom-partido que ela própria prefere escolher, já que será para seu usufruto, e ela que pagará a conta.

Até há pouco tempo, sua vida era alinhada com as expectativas da família e da sociedade. Isso fazia bem à família e à sociedade. Comportava-se com elegância, até mesmo em situações absurdas, que as revistas adoravam incluí-la em seus artigos, utilizando-se de manchetes que, muitas vezes, contradiziam a lógica da Língua Portuguesa. Isso não a aborrecia. A vírgula mal-empregada, essa sim era capaz de arruinar seu dia, pelo poder que tem de mudar tudo na vida de uma pessoa que não pediu para ser alvo da pontuação — e da falta de noção — de estranhos.

A mudança começou quando conversava com um de seus funcionários. Ele cometera um erro crasso, que custara um montante substancioso ao caixa da empresa. Os empregados estavam apavorados, carregando no semblante o peso de tal cometimento, sussurrando indelicadezas ao funcionário em questão e lamentos a si mesmos. Prometendo serem mais exigentes com o culpado da vez, transformarem a vida dele em um inferno, para que ele pagasse a conta desse incômodo coletivo ao qual o dito arrastou a todos.

Afinal, ele estragou a camaradagem da hora do cafezinho.

Ela assistiu a tudo, o olhar distraído com o amarrotado da camisa do funcionário execrado, que passara a noite no sofá do escritório, alternando infelicidade com desespero e consumindo energético. O rapaz, jovem e inexperiente, faltou ajoelhar-se, durante sua aceitação de culpa, enquanto silentes diretores, chefes com currículos invejáveis, observavam a cena, como se não tivessem nada a ver com isso.

Ela acreditava que sim, eles tinham.

Eles achavam que aquele jovem e inexperiente profissional deveria carregar a culpa pela indiferença deles em compreender que ele ainda não era capaz de arcar com tal responsabilidade. Ele precisou aceitar o trabalho, mas eles não precisavam delegar tal função a ele. Estavam preocupados com negócios mais rentáveis, viagens requintadas, que aquele projeto para saciar sede de consumidor pelo politicamente correto era um engodo, uma enfadonha realização.

Sua vontade era imperativa naquela empresa, que por mais de década, ela só fez melhorar o serviço e, consequentemente, o faturamento.  O pai tinha por ela um orgulho de vitrine: dizia a todos como se orgulhava da filha, menos a ela.

Credita o acontecimento ao momento em que se distraiu com a camisa amarrotada do jovem funcionário. Enquanto ele se defendia, já ciente que sua punição seria a rua, ela imaginava como seria a vida dele. Será que ele mesmo passava suas camisas? Seria sua mãe, sua esposa? Haveria pessoas na vida dele capazes de amenizar o caos que ele enfrentaria, no final do expediente?

Distraiu-se da vida pronta e se pegou curiosa a respeito de todo o resto.

Aquele foi seu último dia de trabalho. Porém, antes de se demitir, ela tomou decisões impossíveis de serem desfeitas, mesmo ela não trabalhando mais na empresa. Assim, o funcionário do prejuízo milionário foi inscrito em um programa de treinamento para que, em poucos meses, pudesse se tornar diretor exclusivo do projeto social que sofreu com suas decisões. Ela também fez com que todos os funcionários assistissem a uma palestra com um filósofo do qual ela gostava muito, na tentativa de que, eventualmente, entendessem que, colocar-se em primeiro plano é saudável, contanto que isso não envergonhe, martirize, prejudique o outro. Para finalizar, demitiu a equipe de silentes gerentes.

O pai já quis interná-la, algumas vezes. Acredita que ela enlouqueceu, mas não há médico que ateste isso. Ela nunca esteve tão sã, tão inteira. O jovem funcionário está empolgado com o programa de treinamento. Ele contou a ela o que planeja modificar quando for responsável pelo projeto social, enquanto tomavam café na padaria da esquina da empresa. E sim, ele mesmo passa suas camisas, não seu esposo.

A irmã lamenta que ela esteja tão descompensada. O pai diz que não tem mais aquela filha, que ela morreu e foi enterrada em outro país. A mãe, bom, essa nunca prestou muita atenção nela mesmo. Mas o que importa é o que ela tem a dizer sobre si, e que, agora, ecoa tão diferente. Muito mais profundo, intimamente conectado com o que acontece no mundo, além das fronteiras demarcadas por status e desejo herdado.

Um ou outro comentará com os colegas de trabalho, apenas para aquecer bate-papo da hora do café, que viu essa mulher louca, nojenta, deitada na calçada, atrapalhando o trafego de pedestres. Dirá que até que ela não estava assim tão malvestida, suas roupas nem estavam sujas, e parecia que tinha lavado os cabelos ainda há pouco. Haverá uma série de comentários a respeito de como o ser humano está em declínio, a vida difícil, um horror!

Distraídos com detalhes aos quais escolheram se agarrar, deixarão passar o mais interessante da história dela.

Naquela tarde, ela caminhou pela cidade, desprovida de conhecimento sobre sua geografia, que nunca saiu de casa sem chofer, nunca precisou prestar atenção ao caminho. Caminhou durante horas, o coração repleto de novidades. Era como se fosse a primeira vez que saia para um passeio. Tudo a afetava: cores, cheiros, cabelos, roupas, trejeitos, palavras, a cadência dos passos.

Em êxtase, despida da distração que a mantinha engaiolada pelo permitido e delimitado, ela se deitou na calçada para observar o céu cinza. Tivessem lhe perguntando o que fazia, em vez de tecerem teorias a respeito, ela diria: estou sendo tocada pelo mundo.  

Imagem: Salomé © Francis Picabia

carladias.com


Comentários

Zoraya disse…
Carla, que história fantástica, em dose dupla. fantástica de linda e fantasticamente bem escrita. Cada vez melhor, hein?
Carla Dias disse…
Obrigada, Zoraya. Sempre. Beijo.

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