SALA ESCURA >> Carla Dias >>


Houvesse alguma divindade disposta a atender desejos apimentados pela necessidade de saber a respeito, esse contemplador que sou  e que não tem mais o que fazer, a não ser cultivar curiosidade sobre o que não lhe cabe mudar — a tiraria de lá.

Daquele lá onde ela resiste, pausando acontecimentos no ponto em que eles deveriam enveredar pela mudança necessária. Eu sei, atento que sou aos detalhes, que mudanças também podem ser tratadas como item cosmético, apenas para se ajeitar aqui e ali, até que a coisa toda fique aprazível aos olhos, e o resto dos sentidos que se danem. Porém, não é o caso...

Ela vive em sua caixa, como se fosse boneca à espera de se tornar presente para alguém que a tirará desse lugar ao qual pertence em solidão de dar nó. Quando sai para tomar ar, age como personagem em episódio de série estrangeira, som original, sem legenda, assistida em televisor de tubo, valendo-se da falta de tecnologia para se esconder dos olhares, do pertencimento a um mundo de pessoas que se vigiam, que esgueiram olhares aos outros o tempo todo.

Essa privacidade existencial que a ronda, ela abraça feito filho fugido que volta para casa, depois vinte e quatro horas, um boletim de ocorrência e muitas lágrimas.

A pele entrega informação crucial: o sol não lhe toca há tempos. A palidez estampada em sua pele me lembra a necessidade de meu avô em me benzer uma vez por semana, quando eu era menino, garantindo que eu jamais me transformasse em leito de quebranto. No caso dela, não posso deixar de pensar em contradição, daquele tipo em que a tristeza se torna a beleza de uma imagem.

Quando em público, seus passos são cadenciados em Adágio, com aquela vagarosidade e ternura que vivem entre os 66 e 76 BPM. Raramente a notam, que ela tem a sua capacidade em passar despercebida como amiga mais querida, das quais se sente saudade, mesmo quando no mesmo recinto.

Eu que aprecio a observância do díspar, que tenho esse talento nato para cravar olhar naqueles que passam a vida a fugir da lâmina da revelação imposta, e sem vocação para a modéstia a respeito da minha habilidade em ler pessoas, eu sei que ali, naquele universo-ela, há mais do que ela entrega ao mundo.

Assim, descubro, a base de muita contemplação e paciência, que quando não está no mundo, cuidando para passar em branco, ela está em sua caixa, esse pequeno cômodo onde ela espera por quem a resgate, mas não de resgate feito os que acontecem em filmes americanos de ação.

Na sala escura, ela se ilumina. Naquele lugar onde ela se despe de suas máscaras, e dança por horas, não de maneira graciosa como as dançarinas do Bolshoi, ainda assim, primorosa em sua coreografia-catarse.

Na sala escura, ela se comporta como protagonista de si. Há tanta energia a circular pelo espaço. Há tal esperança desavergonhada a gritar vontades ao silêncio. Alguns dos seus desejos deixariam encabulados muitos dos despudorados assumidos. Ela expõe ali cada segredo, até mesmo os que aprendeu a esconder de si. É uma exposição digna das mais badaladas galerias de arte-de-ser.

Ela grita, chora, esperneia, gargalha, descontrola-se em todos os tons, maldiz seus sonhos, para então assumir que eles lhe são caros. Descabela-se, desnuda-se, permite-se ser invadida pela intromissão da consciência em seu estado de espírito de doidivanas. Acalma-se, pranteia. Cobre a nudez com a singeleza do lençol, este que ela anda a arrastar pontas pelo chão, feito a barra de um vestido que alta-costura não reconhece como obra de arte.

Talvez eu não devesse observar de tão perto, espiar essa sala escura na qual ela solta seu ser para ser quem lhe dá na telha. Talvez seja importante para ela manter segredo sobre fascinante criatura se esconde sob a palidez daquela que sai todos os dias de casa para encarar o mundo.

Por que não ser essa criatura lá fora? Por que ater-se à sala escura?

Ocorre-me, então, que também eu tenho minha sala escura, aquela parte de mim que não se misturo ao mundo. Entristece-me pensar que ela possa esconder o mais apaixonante de si pelo mesmo motivo que escondo essa parte de mim. Por medo de que, além dessa sala escura, aquilo que é o melhor, o mais apaixonante de si, não seja reconhecido como tal diante dos olhares observadores, da curiosidade dos censores de plantão, da necessidade de adjetivos para endossar conteúdo, da vitalidade dos profissionais da conversão, amém. Então, melhor manter viva a percepção, ainda que a sós, em sala escura, para si e seus fantasmas.

Houvesse coragem em mim capaz de manter em curso a beleza de quem ela é, assim, da forma como essa beleza a assola, quando na sua sala escura, eu rezaria aos santos e piscaria aos demônios, depois a tiraria de lá e a levaria para, junto a mim, perder-se por aí. Sem retoques.


Imagem: La Dormeuse © Tamara de Lempicka

Comentários

Albir disse…
Perder-se, quase sempre, é achar-se. Mas isso exige o permitir-se.
Lindo, como sempre, Carla.
Zoraya disse…
"Ela vive em sua caixa, como se fosse boneca à espera de se tornar presente para alguém que a tirará desse lugar ao qual pertence em solidão de dar nó.".
Carla e suas frases absurdamente cheia de sentidos e beleza.
Carla Dias disse…
Albir, permitir-se é essencial. Sempre bom encontrá-lo por aqui. Beijo.

Zoraya, elas que teimam em ser desse jeito.  Beijo.

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