WILLIAM, O ORDINÁRIO - ÚLTIMA PARTE >> Zoraya Cesar

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A última incursão do ano tinha que ser primorosa, para coroar um ano de êxitos durante o qual matara e fugira, impune e tranquilamente. 

Preparou-se para dali a dois dias, quando ocorreria, segundo todos os informes meteorológicos, uma chuva torrencial, a última da estação. Resolveu usar a  linha de ônibus e as roupas que utilizara da primeira vez, fechar o ano em grande estilo.

Na noite esperada, olhou-se no espelho antes de sair. William, o Extraordinário, pensou, satisfeito consigo mesmo, com sua vida, com sua argúcia. Uma pena, refletiu, antes de sair, não ter com quem dividir sua glória, a quem mostrar o quanto era especial. Se contasse para alguém teria que matá-lo em seguida, pois ele suportaria tudo, menos ser preso ou voltar à vida ordinária de antes. 

William sentiu um frisson ainda mais poderoso do que sentira em todas as outras empreitadas, como se algo inexplicável e incomum estivesse para acontecer.

A CAÇADA - Sentou-se, como sempre, no fundo do ônibus, fingindo dormir enquanto observava as passageiras. As ruas foram se sucedendo, as pessoas saltando, sem que ele avistasse a mulher ideal. Começou a sentir-se verdadeiramente incomodado. Será que teria de voltar para casa de mãos abanando? Sem fechar sua sequencia de assassinatos bem sucedidos? 

Estava quase desistindo quando ela se levantou. William prendeu a respiração, a adrenalina acelerou seu coração, sua boca ficou seca, as pupilas dilataram. Ela era perfeita.

Baixa, tão magra que parecia um osso para cachorro roer. Os cabelos desalinhados estavam amarrados em um rabo de cavalo mal feito, vestia-se muito simplesmente, parecia humilde e achatada pela vida. A bolsa – o verdadeiro cartão de visitas de uma mulher - era velha e muxibenta. Não usava maquiagem e tinha fundas olheiras, destacadas em sua tez amarela-escritório. Parecia uma boneca quebradiça. William teve um estranho sentimento por ela, como se experimentasse compaixão; ele sabia o que era ser ignorado, o que era ser comum. Admirou-a, extasiado, sentindo uma fibra desconhecida bater em seu coração. Parecia daquelas mulheres cuja idade permanece indefinida ao longo dos anos, que trazem em si um mistério a ser desvendado. Seu aspecto lembrou a William o de uma pequena fada cansada. 

Ele se apaixonou nesse mesmo instante. 

ESTRANHAS FORMAS DE AMAR -Sentiu-se feliz como nunca na vida pensara ser possível. Sentiu que o amor e a morte eram parceiros inseparáveis e era aquilo que procurara por toda sua vida. Teve, então, uma curiosa certeza, que lhe causou tristeza tão profunda, que quase o afogou: aquela seria a sua última vítima. Nenhuma outra jamais lhe bastaria.

Quem sabe, se a tivesse encontrado em outras circunstâncias... Agora era tarde, um verdadeiro caçador não perde o foco de sua presa. Seus sofrimentos, pensou William olhando-a amorosamente, estão prestes a acabar. 

Ela saltou, cabisbaixa, delicada, indefesa. William sentiu vontade de abraçá-la, acabar com aquela angústia. 

Chovia muito, a natureza derramando, talvez, lágrimas pela brevidade da vida, pela veleidade do amor, pelo inescrutável destino.

Ao contrário das outras, essa mulher não correu para escapar do vento frio. Andava lentamente, como que a esperar alguma coisa. William agarrou-a por trás e apertou sua traquéia firme, mas sem a violência que aplicara nas vítimas anteriores. Queria olhá-la de frente, com os olhos ainda vivos, dizer-lhe palavras de conforto antes do aperto final.  

O golpe foi rápido e eficiente, na altura do seu rim direito. Embora a roupa grossa tenha amortecido a dor, o impacto foi forte o suficiente para que ele soltasse as mãos e se afastasse. titubeante e surpreso. 

A frágil fada reagira! 

Ela deu um passo para trás e puxou uma arma. Como pudera escondê-la, pensou ele, magra daquele jeito? William sentiu um assomo de orgulho, não se apaixonara por uma qualquer. A luz do único poste a iluminava, molhada, olhos esbugalhados, cabelo ainda mais desalinhado, a boca aberta, tentando aspirar todo o ar que escapara na curta refrega, o rosto crispado de medo e susto. Em outras circunstâncias, talvez... Mas nada disso importava agora. William tinha de tomar uma decisão: matar ou correr. 

Pare ou eu atiro, gritou ela. 

William decidiu-se. Jamais seria preso. E avançou, gritando, ele também. 

Ela atirou. Uma, duas vezes.

William foi atirado longe, os pulmões se enchendo rapidamente de sangue, os ouvidos ribombando pelo som do revólver, a consciência se dando conta do que acontecera. Só queria poder dizer o quanto estava feliz por morrer pelas mãos da mulher de sua vida, vida essa que para ele, no fim, fez todo o sentido.

COISAS DA VIDA - Horas depois, o lugar parecia um set cinematográfico, lotado de policiais, jornalistas, curiosos. A moça, ainda trêmula, contava ao inspetor como todo o plano dera certo.

Não, pensou Felipe Espada. Nada dera certo. Mulheres indefesas morreram inutilmente até que chegassem ao assassino dos becos. Sua pupila mais bem treinada poderia ter morrido, pois os agentes que deveriam dar-lhe suporte não chegaram antes que ela tivesse que atirar. Por ele, a jovem policial jamais passaria pela experiência de matar outro ser humano, e o tal sujeito, William, estaria vivo, para pagar com sua liberdade pela morte de pessoas inocentes. 

Não, suspirou o policial responsável pela investigação que encontrou o assassino. As coisas não saíram do jeito que ele queria.

Mas não era assim, a vida?

Comentários

Ah, Felipe Espada, como eu gostaria de estar aí para consolá-lo nessa sua decepção... mas não fique frustrado, meu caro amigo, dentre todos os finais possíveis, é sempre o melhor que acontece...

beijo!

Marcio disse…
Das duas, uma; ou o Felipe Espada não lê jornais, ou chegou recentemente ao Brasil (ou ao planeta, quem sabe).

Por aqui, nossa vergonhosa execução penal garante a qualquer verme repugnante benefícios que fazem o crime uma das atividades mais promissoras e prósperas de nossa sociedade (já ouviu falar em José Dirceu? É um caso paradigmático).

A única punição que realmente dói nos criminosos é ter que pagar advogado. Isso os atinge em uma parte muito sensível do corpo - o bolso. E ainda lhes fere o orgulho de sentirem-se os malandros mais mega-super-ultra-blaster cacildis do esgoto, pois tiveram que recorrer à ignominiosa condição de otários que pagam advogados.
Clarisse Pacheco disse…
Agonia e êxtase de nosso (anti) herói...
Disse-me-disse, disse…
Nooossa, Sr. Leitor de nome Marcio, pegou pesado, heim!? Não precisava ficar tão p*t* (sem provocação política, é apenas um palavrão disfarçado!) da vida... era só mais um conto da Tia Zoraya, não um fórum de discussão da reforma do Código Penal. Passôôô, cacildis! Ah, e se não passou, quem sabe uma comentarista solidária possa também consolá-lo de sua decepção... mas só depois do Espadão, pode ser?!
Anônimo disse…
Acho que discussão política não tem nada a ver. O conto é surpreendente e bem escrito, muito bom. Vanda
Anônimo disse…
Deu medo. Tem muito William por aí. A história é tensa, prendeu até o fim.
aretuza disse…
Até q enfim o Espada apareceu!!! Agora podia ter um irmão do William querendo vingança... e o Espada entrar em ação de novo!
Albir disse…
Em breve seu Espada não deverá nada para Poirot.
Claudia D disse…
Uiiii adorei a história! Prendeu minha atenção de verdade! Qto ao coleguinha inflamado no discurso político, vai uma dica: uma dose boa de sensibilidade é requisito imprescindível para saborear uma bela obra de literatura.

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