O rosto e a poltrona >> Leonardo Marona

No sonho eu ainda acreditava no amor reconhecido. Sabia disso porque me sentia inseguro, com frio, sem fome, com raiva – no céu da boca o rastro de algum ansiolítico.

Eu andava no sonho, com um velho roupão esfolado. Havia também você no sonho, você visitante, você de passagem, você que não veio, você inviável, você mil caminhos, ali estava você, querida sem rosto: você que sorria.

No sonho fingíamos. Você dizia:

- Ah, querido, que dia lindo faz lá fora, lembra aquele dia perfeito... Vamos sair?

Eu sorria:

- Escuta, preciso da sua ajuda para encontrar um título.

Você não entendia aquilo, do dia estar lindo e eu pensar em títulos. Você, que no sonho era minha ternura perdida, você que se lambuzava sentada à mesa, não sabia o que dizer. Existia algo brusco no meio dos espaços vazios, frágeis, antes ocupados por brigas, por choros incontestáveis, por palavras de desespero, pela vida que se esvai, pelos passeios a contragosto no parque, onde comíamos cacau da árvore, que não era bem árvore de cacau, depois viemos descobrir.

Havia uma pessoa contigo, uma pessoa com rosto, com as unhas pintadas. Lembro as unhas pintadas, não lembro a cor, não lembro o rosto, mas era bonito. Não tanto quanto o seu, que era rosto sem rosto, sem rosto o meu amor. Que estava magrinho e com os ossos à mostra, como gado faminto, cabelos cortados, mas estava amando, assim de um jeito tão bonito e antiquado, meu amor amassado, amor amando, e eu precisava apenas de um título.

- Eu tenho os textos, mas eles não apresentam nenhuma unidade. Eu preciso de um título que dê aos textos um eixo comum.

Você andava de costas e de lado, maquinando expectativas que eu sabia de cor e pelas quais eu dizia: “Mas como?”

Agora era você com um roupão esfolado, enrolando um tapete, malas na porta, as unhas pintadas eram tuas, ainda sem rosto, sorrindo cansada, e onde estava a amiga? Eu estava tão triste que não podia chorar. Estava agora sem roupa, magro, a luz baixa e a coceira na carne.

- Preciso ir embora.

Impossível saber quem disse a frase.

Eu te acusei, meu amor. Eu te acusei porque tremia de frio e você precisava ir embora, você precisava seguir o ritmo recusado pelas harpas de satã. Eu te acusei porque o amor é um paradoxo perfeito para os que andam pelo quarto – e eu fumava! – à procura de títulos para frases sem eixo, com o roupão esfolado.

- Você é egoísta! Você não me ajuda!

Você desenrolou o tapete e me mostrou títulos bordados nele. Você foi paciente, amor sem povo, você foi indiferente e calma. Das janelas, muitos te olhavam sem saber se você estava morta. E aplaudiam. E apontavam.

- Preste atenção – você dizia segurando o tapete aberto. – Os títulos devem ser simples: “Rei Lear”, “La Chinoise”...

Os títulos bordados no tapete, que você voltou a enrolar. E havia também agora o sol, como um parente indiscreto, quando entrou no quarto acusando um rastro de poeira, tão parecido com a necessidade dos que amam sem saber que nome. Porque a necessidade dos que amam é poeira que entra e sai pela janela.

Eu disse que pularia, que pularia pela janela se você fosse embora. Você me olhou e, quando me olhou daquela forma, tinha no rosto um outro rosto subliminar, um rosto que permanecia em constante mutação, como se fosse todo o desprezo e a pena do mundo, em plena mutação, alguns lances sublimes, em formas guardadas na minha mente que não guarda mais formas.

Você pediu que eu ajudasse com as malas, que levasse tudo até o carro. Eu disse que não levaria coisa nenhuma, mas, como nos sonhos, muitas vezes nos negamos e somos arrastados por forças ainda desconhecidas.

Estávamos num hotel daqueles com carpete vermelho, senhoras falantes de olhos fechados e maçanetas douradas. Os valetes usavam um chapéu coco desses de boneco de ventríloquo. A menina das unhas pintadas, com o rosto bonito de que não me lembro, desceu conosco, e sua presença era um hálito quente na minha nuca, dizendo: “Procure sozinho”.

Lá embaixo, as malas empilhadas, um lenço que pendia esvoaçante no seu pescoço, um pescoço roxo, decaído. Eu gritei, finalmente. Eu gritei barbaridades sobre ausência, egoísmo, ostentação e máscaras. Eu usava uma.

- E de quem é esse carro? – eu gritei.

Havia um carro na porta do hotel.

- Quantos carros você tem? – insisti.

- É do meu namorado – você disse de unhas pintadas. – Ele tem dois, ele é rico, com banco de couro e tudo...

Eu te ofendi, meu amor sem rosto. Eu ainda não tinha um título e você estava feliz, com o pescoço roxo, o lenço caído no chão, voando sozinho no tapete vermelho do hotel com maçanetas douradas, de onde vinham lanças de luz ao sabor do sol. O sol desnudava a poeira mais uma vez, e eu pensava em janelas, em varais de roupas lavadas, nos dias perfeitos que funcionam melhor nas músicas, no que entra e no que sai da vida, no que tínhamos quando nos sentíamos miseráveis, juntos, a contragosto.

Pensava em quando ainda chorava, quando não era ainda tão triste que não podia chorar. Então quis chorar. Me escorreu uma água suja dos olhos, então eu disse:

- Vou procurar sozinho o meu título, não preciso de você, você se tornou alguém desprezível, vá embora com seu banco de couro, com seus tapetes cheios de nove horas, com seu pescoço roxo decaído, não quero você mais aqui, tome seu lenço, e não me procure nunca mais!

- Essa frase fui eu quem disse – você disse – há muitos anos. Quero de volta a poltrona que eu te dei de presente.

E então subimos, pela última vez juntos, eu e meu amor sem rosto, para desmontar a poltrona e trazê-la aos pedaços, uma poltrona enorme, já que inteira ela era insuportável, pesada demais, não daríamos conta sozinhos.

Comentários

Anônimo disse…
...E foi aqui que tudo começou. Confuso. Como um sonho tem que ser, como as coisas reais são às vezes.
Um beijo.
Ju.
Sugestão de título: "Éguas, Diabos e Mares Noturnos".

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