A CARTOMANTE [Débora Böttcher]


Naquela manhã em que a Dra. Anne estava de folga, a enfermeira avisara que não iria trabalhar. Enquanto ela banhava a mãe debilitada por doença terminal, pensava no médico pelo qual tinha se apaixonado. Depois de vestir, pentear os cabelos e aprumar delicadamente a velha senhora com a bandeja de café, ela buscou o telefone.

Ainda ouvia a secretária dizer que o Dr. Pedro não podia atender quando a campainha tocou. Rapidamente ela deixou um recado, instintivamente sabendo que não haveria retorno.

A cartomante estava ao pé da porta. Jovem, com cabelos louros cacheados num rosto alvo de instigantes olhos azuis, sorriu levemente ao se apresentar, desculpando-se pelo breve atraso.

Dentro da casa observou, num relance, os detalhes à volta: a sala de sofás claros com almofadas coloridas; o tapete neutro, as cortinas cerradas - apesar do dia ensolarado.

A Dra. Anne apontou a mesa oval da sala de jantar; ela se sentou e, enquanto aguardava, tirou o baralho da pequena valise que carregava e acendeu uma vela branca.

Quando a médica acomodou-se à sua frente, ela já tinha embaralhado as cartas e desenhado uma disposição em sequência perfeita sobre a mesa; pediu para que fossem escolhidas dez cartas aleatórias.

Separando suas prediletas, a Dra. Anne disse à cartomante que não queria saber de notícias ruins: nada de mortes, rupturas ou perdas. A jovem cartomante limitou-se a ouvir, balançando vagarosamente a cabeça num aceno de ter entendido a orientação, para em seguida concentrar-se nas cartas, separando-as em cruz, umas sobre as outras, intimamente pensando que não eram necessários baralhos para decifrar a mulher de quarenta e poucos anos que a olhava.

Ainda assim cumpriu o ritual e, sem tirar os olhos das imagens, falou de traços de sua personalidade, dos dois casamentos desfeitos, do frustrado desejo de ter filhos, da ascensão e realização profissional. Ela sabia por que a Dra. Anne a havia chamado e resolveu não se alongar mais em informações irrelevantes.

A cartomante então falou de um homem claro, pouco mais jovem que a Dra. Anne, que traria um novo significado aos seus dias pesados e solitários. O rosto da médica se iluminou - o que a faz parecer mais jovem por um momento - e ela disse que já o conhecia: ele era dois anos mais jovem e trabalhavam juntos no Hospital. A cartomante a interrompeu com um leve gesto das mãos, declarando que o homem em questão não era médico.

Os olhos da Dra. Anne se estreitaram - talvez desapontados, talvez furiosos. Um longo silêncio se fez na enorme sala, antes que a médica estendesse o dinheiro do pagamento. A cartomante recolheu o baralho, apagou a vela e levantou-se.

- Não é esse homem - profetizou. E ouviu a porta bater-se fortemente às suas costas.

* * * * *


Muitos dias depois, após a exaustiva jornada hospitalar, a Dra. Anne tomava um café no antigo pub que frequentava na juventude, enquanto uma música leve lhe chegava aos ouvidos vinda do fundo da sala. Nenhum telefonema do Dr. Pedro nas últimas três semanas, o que a fazia sentir-se muito aborrecida.

Ela procurou na bolsa seus cigarros e, no momento seguinte, percebeu um braço estendido em sua direção, a chama de um isqueiro iluminando seu rosto cansado na penumbra da noite. A Dra. Anne teve um sobressalto; o rapaz sorriu. Ambos riram.

Ela se lembrou da cartomante. Os baralhos não mentem...

Imagem: Baralho de Tarot

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