MOÇO DE CHOCOLATE [Cris Ebecken]


Corre por múltiplas línguas femininas o estranho conselho adocicado: em casos de solidão sem jeito imediato, coma chocolate. Precisei subvertê-lo devido a uma questão orgânica: meu organismo funciona às avessas, tem intolerância e reage resistentemente ao açúcar. E sim, provavelmente, segundo deduções médicas, a síndrome foi desenvolvida em decorrência a um período estressor afetivo.

Mas hoje, já há tempos mergulhada em casa, livro a livro, trabalho a trabalho, mal respirando meia troca de olhares com o mundo, essa chuva fina pontiaguda que acordou a cidade fez a solidão esmurrar a porta. Como quem tenta escapar de uma visita não bem vinda, peguei a saída dos fundos, dobrei a esquina da rua respirando. A cada passo dado, nesse mesmo bairro aonde resido há tanto tempo, mais estrangeira me sentia, mais desamparada me situava.

Lá pelo meio dessa fuga-andança, com alguns trocados na calça, topei com uma lanchonete. Bem ali, assim despudoradamente se exibindo, logo na frente: potinho de mousse de chocolate. Eu e ele, olhos nos olhos, sardas nos granulados.

O recipiente de plástico arredondado, milimetricamente igual ao que minha avó me presenteava quando menina, parecia abrir os abraços. Em segundos, feito relâmpago, me vieram as mãos dela como se segurassem o pote com mousse, e então a forma cuidadosa de fazer carinho, a voz tagarela fazendo presença a todo instante. Sim, como quem pega um cometa atemporal fui à meninice, em um tempo em que tudo que existia a minha volta de adultice era minha avó em sua doação amorosa me criando.

Instintivamente pensei: mousse de chocolate! Nele se encerravam todas as compreensões do afeto: as primeiras medidas e formas aprendidas quando se é criança: o pote; as descobertas das texturas dos sabores ao longo do aprofundamento das vivências: o chocolate.


Os dedos reviraram o bolso até somarem a quantia exata. Não havia em mim nenhuma expectativa de resoluções químicas, nenhuma busca de preenchimento beijoqueiro ou orgásmico através do chocolate, nenhuma idéia de feitiçaria ou qualquer coisa estratosférica que ressuscitasse minha avó, muito menos um mero desejo do doce pelo doce. Mas o fato foi: voltei para casa com ele, ele permanece intacto, consegui retomar o ofício sem estremecimentos, toda vez que a solidão ameaça abro a geladeira e o olho.

Assim ficará até mais um pouco, quando antes do prazo da validade farei alguém presenteado. Ironicamente, entre meninices e adultices, muitas significações parecem ter alterado os lugares dos sabores com isso. No momento, acompanhada por um mousse de chocolate; em breve, chocolate para um moço apreciador das estranhezas do meu doce.

Foto da própria autora

Impressões, Canela de Verso e Prosa, Sonhos do Mundo

Comentários

Anônimo disse…
é muito grande!!!
Ah, na véspera do vencimento do prazo de validade, dá o mousse de chocolate pra mim? :) Gosto de seus textos e de suas fotos.

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