A DOR E A DELÍCIA DE COMPLETAR 100 ANOS >> Cristina Carneiro



Dona Canô no meio do furdunço




Domingo, 16 de setembro, dona Canô chamou a Bahia para comemorar seu centenário em Santo Amaro da Purificação. Por tabela, eu fui; afinal, um chamado de dona Canô não se pode negar.

Entrando na malcuidada Santo Amaro, que me lembrou Camocim sem mar, fiquei pensando como é que daquele confim saíram Caetano e Bethânia para o mundo. Lembrei que dona Canô teve uma educação exímia: aprendeu inglês, francês, tocou piano e cantou muita música popular para seus meninos, introduzindo-os na arte para sempre. Foi a primeira dor funda do dia: lembrei que hoje quase não existe mais isso. Os pais enfiam seus filhos em colégios, pagam tufos de dinheiros, lavam as mãos e sequer ouvem 'Leãozinho' junto a suas crianças.

Na sacristia, ao esperar o início da missa em ação de graças a dona Canô, fiquei observando o vaivém das gentes todas que chegavam para o aniversário. A imagem de Nossa Senhora Aparecida também veio de Aparecida, em São Paulo, para os cem anos. Devotos, com celulares ou máquinas digitais em punho, faziam questão de fotografar a imagem. Adoração à imagem número um, dor funda número dois: mais importante do que rezar era fotografar a santa.

A adoração à imagem de Nossa Senhora apenas se juntou à adoração às imagens de Caetano, Bethânia, Regina Casé, Elisa Lucinda, Jacques Wagner ou de qualquer outra pessoa não anônima que se encontrava lá, que eram muitas, por sinal.

O que era para ser uma missa em ação de graças, um encontro da família, tornou-se um espetáculo, que seria visto mais tarde em todos os jornais. Eu, que fiquei nos bastidores, quase não vi o branco dos cabelos da dona Canô. Ela estava a 20 metros de mim, mas eu não conseguia ver a miudeza da criatura. Cinegrafistas, fotógrafos, jornalistas e caras-de-pau abarrotavam os acessos, a vista, o vento, maltratavam dona Canô com a luz das câmaras. Adoração à imagem número dois, dor funda sem-número: mais importante do que a celebração dos cem anos era mostrar tudo mais tarde pela televisão.

Como testemunha ocular do meu tempo, coisa que aprendi com meu pai, queria ver dona Canô, queria ver uma pessoa de cem anos, queria ver a missa, mas o jeito era seguir o foco das câmaras. Em um dos momentos, percebi todos os flashes voltados para um certo canto, pensei que fosse dona Canô, mas não, era Bethânia e Caetano. Dona Canô estava do outro lado, esquecida, esticando o pescoço, tentando ver, entre os câmaras e fotógrafos, os filhos cantando na missa de seu centenário.

Eu quis sentir pena dos padres, que foram obrigados a dividir o altar com os cinegrafistas e caras-de-pau, mas nem, os padres também faziam parte do fuzuê do espetáculo: queriam loucamente ser fotografados e fotografar as celebridades.

Antes da missa começar, um dos padres (a missa foi celebrada pelo cardeal arcebispo de Salvador com o auxílio de 14 padres) me pediu para que, se eu pudesse, ficasse com a máquina digital dele e, quando eu tivesse uma oportunidade, o fotografasse perto de Bethânia e Caetano, só desses dois, ele frisou, o resto não. Eu neguei, pedi desculpas com cara de desprezo por um padre que esconde uma máquina debaixo da batina enquanto faz olhar de compaixão diante da imagem de Nossa Senhora Aparecida. Mas enquanto eu fazia a minha cara de desprezo, o governador da Bahia, Jacques Wagner, entrou no recinto. O padre pidão quase quis que eu o fotografasse com o governador, fiz um olhar matador e ele desistiu. Saiu saltitando, foi pedir para uma outra pessoa. Adoração à imagem não sei qual número, dor funda: eu ria de tristeza.

Esse padre-auxiliar não foi o único. Durante a missa, volta e meia, os padres se revezavam, arranjavam uma brechinha, iam lá na frente, levantavam o braço e registravam Bethânia e Caetano, Regina Casé e etc.

Ao final, depois de, com toda razão, se irritarem, Caetano não deu entrevista para a imprensa. Bethânia deu um grito quase assim: uéu, deixa eu tirar minha mãe daqui. A aniversariante foi embora, o fuzuê continuou: Regina Casé foi a sensação.

Fui embora de Santo Amaro da Purificação querendo ter vivido no tempo de dona Canô, quando o melhor as câmaras não escondiam, quando o melhor era o presente, era estar perto, ver para crer.

Fui embora de Santo Amaro da Purificação sentindo pena de dona Canô, por ela ter vivido até ver o mundo se transformar nisso.

Até que ponto vai a sociedade do espetáculo? Até desistirmos de presenciar acontecimentos e ficarmos enfurnados em casa, vendo tudo pela televisão.

De noite, vi dona Canô bonitinha, miudinha, quietinha, com um vestido brilhante, no Fantástico...

Comentários

Anônimo disse…
Necessária a sua crônica. Critico muito a mídia atual, e sua sanha pelo espetáculo banal e sem sentido (não é o caso). Mas não sei até que ponto o programado, contra a vontade dos programadores, fugiu do controle. Um abraço.
Blog do Cintrão disse…
Cristina,

Adorei a crônica-reportagem. Lembrou dos tempos em que repórter escrevia.

Agora, o furdunço é próprio da Mídia que constrói mitos, entre eles o da própria Dona Canô e seus filhos.

E, cá entre nós, se fosse para preservar Dona Canô do assédio e da muvuca, fariam uma cerimônia fechada. Não fizeram sei lá porquê.

Como dizem aqui no Interior, é chato, mas faiz parrrte.

Cintrão
Bem-vinda de volta, Rainha Cristina! Sua prosa é tudo de bom e estava fazendo falta.
Antes de tudo, bem-vinda de volta! E que beleza de texto... Foi mais ou menos isso que senti vendo D. Canô na tela do Fantástico: uma paranerfália na qual ela não se encaixava com sua delicadeza e simplicidade... É realmente triste ver no que o mundo se transforma todos os dias...
Um beijo enorme.

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