INVENTÁRIO DO INDIZÍVEL >> Carla Dias >>

Sente um tanto de inveja dessas pessoas que conseguem alívio ao expor tudo o que sentem.
Para ele, o indizível é companheiro, como quando desejou, de um jeito forte de tudo, aquele presente, e não teve coragem de pedi-lo aos pais. Acabou ganhando algo muito mais pomposo de aniversário, e não conseguiu se sentir feliz, porque a felicidade ficou presa naquele toca discos antigo, capaz de acarinhar LPs como se contasse histórias, que fazia a música arranhar as paredes da mesmice.
Panfletários sempre discutem a importância de se dizer prioridades para que elas sejam respeitadas, para que tenhamos voz própria como indivíduos e membros da sociedade. Porém, ele não compreende muito bem como a necessidade de muitos pode sustentar a boa vida de tantos. A politicagem o desagrada profundamente, assim como as celebridades com a sua importância que dura o tanto que leva para comida instantânea ficar pronta.
Mas quem se importa com pensamentos jamais verbalizados?

Costuma pensar nela, enquanto escuta os discos do Miles Davis, no toca discos que comprou com o primeiro salário do seu primeiro emprego.
Não se trata de timidez, de enfermidade ou promessa. Para ele, dizer é importante demais para se gastar com banalidades, então, abstêm-se de discussões existenciais que nada têm a ver com a existência, das breves críticas sobre arte que nem todos entendem ou souberam apreciar, e até mesmo das discussões com o SAC de companhias acostumadas a enrolar os clientes.
Para dizer o indizível, de um jeito que seja ouvido com a compreensão de mente aberta, prefere as cartas, as manuscritas, porque há um toque de intimidade nelas.

Quando chegou a setenta e oito longas cartas, decidiu dizer o indizível, antes que sufocasse com as palavras engasgadas. Para quem nunca soube dizer, tradicionalmente, ele encontrou um jeito de fazê-lo.
Colocou as cartas em ordem cronológica e as levou para serem encadernadas, como se fosse um livro. No final da tarde, minutos antes do fim do expediente, entregou a ela o arquivo dos seus sentimentos, sem conseguir sequer sorrir, tão mexido ficou com o sorriso dela que, desta vez, era para ele. Não respondeu a pergunta dela sobre o que se tratava o livro, e foi embora em silêncio.
No dia seguinte, e no outro, no outro ainda... Em todos os dias que se seguiram, desde que entregara a ela a sua alma, a moça não mais apareceu. Comenta-se que ela se mudou da cidade. E desde então, ele vem arrastando essa tristeza espalhafatosa, que o faz resmungar quando lhe pedem mais do que está disposto a oferecer, que desperta a estranheza naqueles que, desde sempre, o achavam incapaz de expressar-se.
Sorte que Miles Davis não abandona, mas fica e toca lindamente a música que, em noites mais longas, faz-lhe companhia.

Como dizer o indizível.
Quando o viu na vitrine, não atentou para a importância dele. Queria apenas esgotar o assunto, virar a página, exorcizar os demônios. Mas quando o olhar se atreveu a atravessar a vitrine, lá estava ela, em pé no meio de tantos outros, o livro nas mãos. As tantas outras cartas que lhe escreveu, em formato Best-Seller. E quando ela o avistou e sorriu, ele soube...
O indizível, finalmente, fora desnudado.

carladias.com
Comentários
Espero tua visita!
Que coisa mais emocionante!!!
Nada que eu diga expressa a minha contemplação a esse seu escrito.
Bjs
Debora... Agradecida :) Beijo!
Marisa... Beijos e muito obrigada:)
Eduardo... Ah, o que é indizível emociona. Obrigada por apreciar o meu indizível.
Fernanda... Dizer o indizível é bom à beça:)
Zoraya... Também acho que a poesia permite dizer o indizível, e ainda aproveita para fazê-lo de um jeito muito especial. Beijo!
Whisner... Vou ser honesta: como fã de você poeta, fico muito feliz que o meu poema o tenha nocauteado :)