NÃO-AUTOBIOGRAFÁVEL >> Carla Dias >>

O mundo está cheio de autobiografias.
A minha autobiografia não atrairia leitores. Fosse falar das horas que gasto a fazer absolutamente nada, mas digo fisicamente, porque a mente não para, sem contar que a mente engana tragicamente o corpo dizendo que “tudo bem, você pode ficar tranquila”.
E eu me danei toda levando esse conselho a sério, e por mais que eu tente, a mente continua a mentir, descaradamente, para o meu corpo, levando-me a viver, saborosamente, de olhos fechados, sem testemunhas ou companhia.
E se eu fosse falar de cada silêncio, de cada suspiro, de cada lágrima, de cada grito de alegria. Os nascimentos, os falecimentos, a fascinação pelos perfumes-identidade - que antecedem a chegada de quem queremos bem - , e dos erros, que são tantos que nem saberia descrevê-los com esmero, salientando aqueles que, por escolha ou omissão minha, tornaram-se culpas.
Eu não realizei algo que me desse o direito a uma autobiografia. Não salvei ninguém, não criei curas ou bálsamos, não dei vida à invenção capaz de colaborar com a humanidade. Não evitei guerras ou economizei palavras na hora das ofensas, apenas palavras na hora de dizer benquerenças. Não nasci para ser a melhor versão de mim, mas certamente me tornei a mais frágil, com direito a momentos de coragem sonsa.
Além do mais, quem se interessaria em saber o que penso sobre esse mundo imenso em tamanho e disparidades? E tenho pouca experiência - apesar da idade já pesar nos ombros – em viver as tardes. Como alguém que não vive as tardes pode ser interessante? Porque há muito tempo as tardes me fogem, se não me são arrancadas, eu as ignoro.
A minha autobiografia sequer atrairia curiosos, mas nem por isso me sinto à deriva do reconhecimento. O jornaleiro e o florista me reconhecem para o bom-dia, os meus amigos para a conversa fiada e as importâncias. Minha família me reconhece, e tanto, que como qualquer família, às vezes se desentende com as minhas experiências.
Minha biografia não pede por auto-explicação, até porque sou incapaz de justificar a minha existência, já que continuo em busca de fazer sentido... Ou ser sentida... Ou sentir o sentido que, na verdade, nada mais é do que a constatação de que a maioria das coisas da vida não faz o menor sentido.
Nem o maior sentido. Sinto.
carladias.com
Comentários
Se esse fosse o prefácio de sua biografia, tenho certeza, seria um sucesso, porque você é você e o que transmite é pura poesia! Há quem não fique fascinado em te ler?
Bjs
obrigada pelo presente! Adoro seus textos!
Zoraya... Seu comentário me fez sentir útil : )
Obrigada!
Lidia... Obrigada a você por lê-los!
Eduardo... Oficialmente envergonhada... Obrigada!
Albir... Qualquer dia desses escrevo sobre aminha lista de compras pra tirar isso a limpo : )
Beijos!