O PRIMEIRO DIA >> Whisner Fraga


Há nove meses ela estava conosco e, desde que soubemos que Ana estava grávida, tratávamos Helena por filha, mas foi somente quando a criança deixou o útero e finalmente pudemos ver seu rosto que nos tornamos pais para a sociedade. Não prestei muita atenção ao parto, pois havia uma ordem de minha esposa: não deixe a menina sozinha. Não deixei enquanto não colocaram a identificação em seu pulso. Senti-me como aqueles engraçadinhos que andam atrás das pessoas repetindo todos os movimentos que elas fazem. Sombra, isso mesmo, sombra. Mas quando a gente se vê em um hospital em que as pessoas mais importantes em nossa vida são apalpadas como frangos na feira de domingo, perdemos a vergonha e tratamos de incomodar.

Mais tarde éramos eu, Ana e Helena e uma noite inteira nos assombrando. Ouvimos muitas histórias, não só de amigos, mas também de repórteres, na televisão; de locutores, nas rádios; e também de outros profissionais. Um contava sobre uma criança que havia falecido na madrugada de seu nascimento: morte súbita. Outro, que um bebê havia engasgado com o líquido amniótico e morrera sufocado. Mesmo os que nos procuravam para umas palavras de apoio sempre finalizavam o discurso com um “vai dar tudo certo” que nos deixava desconfiados. Esse “vai dar tudo certo” é muito usado por aí por aqueles que sabem que a probabilidade de algo dar errado é considerável.

Acho que as enfermeiras fazem isso só de sacanagem. É óbvio que não estávamos preparados para passar uma noite inteira sozinhos com Helena. Resultado: dos três, somente a recém-nascida dormiu. De dez em dez minutos, eu me levantava do sofá e ia colocar a orelha perto do nariz da menina, para me certificar que ainda respirava. Ana, que não podia sair da cama, sussurrava de meia em meia hora: “tá tudo bem?” O que ela queria saber, é claro, era se eu já havia verificado a respiração de Helena, se ela estava quentinha, se ia conseguir vencer a noite.

Venceu. O café da manhã de hospital me pareceu um desjejum de rei. Uma enfermeira passou, trouxe um remédio para Ana e eu estava com vontade de abraçar todo mundo. Mas a minha euforia não ia durar, óbvio. Dali a pouco, em frente a uma placa de silêncio, enorme, em que uma loira colocava sensualmente o seu indicador defronte os lábios encardidos de um batom sanguíneo, lascivo, em frente a esta placa, um sujeito engatilhava uma furadeira e se preparava para ligá-la. Se Helena vinha lidando bem com sua vontade de chorar, não suportou mais: só esperou o estrondo da broca perfurando a parede. Sem aviso prévio, reiniciam a ampliação do prédio, assim, sem isolar aquela ala do edifício.

Pedi para chamarem o responsável, que me advertiu que a reforma continuava, como planejado, e que seguiria dia afora. Mesmo achando tudo estranho, afinal desde criança ouvi dizer que não se faz barulho perto de hospital, que não se buzina em frente a pronto-socorro, mesmo sabendo que algo estava errado, solicitei que nos trocassem de quarto e ponto final. Era um dia de festa. Mas estavam demorando muito, tinham de consultar o chefe um, o chefe dois, o chefe três e o quatro, se necessário. Pronto, conseguiram a proeza de detonar a minha paciência em pouco mais de hora e meia. Empunhei a filmadora e, caminhando pelo corredor, fui registrando as atrocidades: a placa de silêncio ao lado do perfurador de paredes, o olhar confuso de uma paciente ao lado de um operário marretando sabe-se lá o quê. E fui narrando – dei voz ao Sílvio Luiz que descansava em mim – e, tão alto quanto pude, contei para a câmera o que estava ocorrendo. Ajuntei uns toques de chantagem, algo entre “procurar meus direitos” e “contactar o advogado”, e em torno de dez minutos estávamos instalados em outro aposento, no andar superior.

A partir desse dia, decidi mostrar a Helena que poucos privilegiados têm o direito de ser respeitados em nosso país. O que não quer dizer que ela tenha de lutar para ser uma privilegiada e sim para que mais pessoas tenham direito à cidadania. Se Helena não pôde nem nascer em paz nem desfrutar o primeiro dia neste mundo com tranquilidade (uma tranquilidade cara, paga à vista), deve se preparar para uma sociedade hostil, egoísta e em guerra contra o planeta.

Comentários

Unknown disse…
Essa saída do útero é um choque de realidade. Tanto para o bebê, quanto para os pais. É o que eu imagino, pois não me lembro de quando era bebê e ainda não tive um filho...rs Mas, neurótica que sou, já sofro por antecedência só de pensar. Bom para Helena que tem um pai que amortece o choque com palavras bonitas :)

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