HERANÇA >> Fernanda Pinho
Hoje
seria um daqueles dias em que eu te ligaria puto, mesmo ainda sendo sete da
manhã. Aliás, eu te ligaria propositalmente e justamente por ainda ser sete da
manhã. Porque eu sei que você estaria dormindo e ficaria igualmente puto por eu
estar te acordando. E sabendo que eu consegui te deixar puto eu me sentiria
aliviado por estar tão puto com você. Então você me chamaria de veado, eu
insultaria sua mãe – mesmo gostando dela como eu gosto da minha – e marcaríamos
de tomar uma mais tarde no bar do Zé. Que nem no dia em que descobri que você
tinha ficado com a Marina. Porra, velho, com tanta mulher no mundo tinha que
pegar logo minha irmã? Minha irmãzinha caçula? Fiquei puto mesmo. Mas aí eu te
liguei, te acordei, você ficou puto também, me chamou de veado, insultei sua
mãe, fomos beber no bar do Zé e tudo ficou certo. Porque tudo sempre ficava
certo entre nós. E eu sei que ficaria agora se eu pudesse te ligar pra dizer o
quanto eu estou puto com a cena que acabo de presenciar.
O
chão da minha cozinha todo cagado e mijado. Minhas revistas Placar destroçadas,
pelo tapete da sala. As capas dos meus vinis do Led Zeppelin comidas (ainda não
tive coragem de olhar o estado dos discos). Meu apartamento parece ter sido
vítima de um furacão que deixou apenas meu quarto a salvo. Isso porque, não
conseguindo dormir com tanto barulho, tive a ideia de trancar a porta do quarto
com o Elvis pra fora. Cara, hoje eu estou muito puto com esse Elvis e com o fato
de você tê-lo deixado comigo. Sério, eu estou mais puto do que no dia em que
soube que você tinha ficado com a Marina. Por que justo eu que nunca tive um
cachorro na vida? Por que justo eu que nunca tive a menor desenvoltura pra
brincar com animais? Por que justo eu que nunca havia trocado uma ideia que
fosse com o Elvis, apesar das investidas dele?
Essas
perguntas ficaram martelando na minha cabeça depois do dia em que sua mãe
apareceu aqui em casa, puxando Elvis pela coleira e dizendo que era um pedido
seu que ele ficasse comigo. Talvez eu passasse a vida inteira me questionando, mas,
aos poucos, Elvis começou a se explicar.
Como
no dia do Atlético e Cruzeiro. Eu deveria estar lá, no estádio. Mas sem você
não fazia sentido. Então ficamos em casa: eu, a tevê, a poltrona, uma caixa de
cerveja, uma solidão abissal e o Elvis. Contrariando seu comportamento tão
efusivo, sentou-se ao lado da poltrona, olhos fixos na tevê, e daquela posição
só saiu quando pulamos juntos pra comemorar o gol do Galo. Fogos na rua.
Latidos lá em casa.
E
teve o dia em que eu decidi levá-lo para dar uma volta de carro, pra ver se
acalmava seu ensandecido estado de espírito canino. Ao que parei no posto para
abastecer, o que eu mais temia aconteceu: Elvis escapuliu. Confesso. Fiquei
muito tentado a acatar o incidente como uma obra do destino e deixar Elvis
seguir seu caminho. Bem longe de mim. Mas uma força maior me impeliu a
procurá-lo pelas ruas do bairro. Minha busca durou quarenta minutos, mas
poderia ter durado apenas dois caso eu tivesse um pingo da sensibilidade que
esse cachorro tem. Elvis me esperava, sim não tive dúvidas de que ele me
esperava, com rabo abanando e tudo, na porta do bar do Zé. Eu ainda não havia
tido coragem de voltar ao bar do Zé, mas aceitei o convite do acaso – ou de
Elvis – entrei, sentei, tomei uma gelada e zarpei antes que eu pagasse o mico
de me debulhar em lágrimas no meio do boteco.
Cheguei
em casa e fiz o que deveria ser feito: parei de fingir que estava tudo bem. E
ao som de You've Got A Friend, do
James Taylor, chorei igual menino, sentado à mesa da cozinha, a cabeça apoiada
entre as mãos. Tudo o que eu queria naquele momento era te perguntar como você
havia tido a coragem de me deixar sozinho. E, então, como se lesse meus
pensamentos, Elvis apoiou as duas patas gordas na minha perna e me lambeu o
rosto. Entendi duas coisas: eu não estava sozinho e me deixar o Elvis foi seu
último ato de generosidade comigo. A amizade que eu achei que havia sido tirada
de mim estava, agora, materializada na forma de um cachorro inquieto como o
roqueiro que lhe deu o nome.
E
é por isso que eu não tenho coragem de devolvê-lo, mesmo que a cada madrugada ele
destrua um pouco do meu apartamento. Eu fico puto, mas depois passa. Eu sempre
acabo te perdoando. Te perdoo por você ter ficado com a Marina. Te perdoo por
você ter deixado o Elvis comigo. Eu só não te perdoo por você ter me tirado a
chance de te ver ficando velho. Filho da puta!
[Enfim, tomei
coragem pra publicar um conto aqui]
Foto: www.sxc.hu
Comentários
O texto ficou lindo,parabéns!
que talento!!
E quando se fala sobre animais, sempre me emociono.
Lindo, lindo que só. Adorei o seu conto, e espero ler muitos outros. Adorei a forma como você conduziu a história. Eu já estava chateada com a morte do amigo lá pelo terceiro parágrafo.
Parabéns... Para quem lê o seus textos, claro. Obrigada por escrevê-los!