RISÍVEL >> Carla Dias >>
Parece-me que a alma escapou do corpo e foi dar uma volta, permitindo que sua carcaça permaneça estacada no chão, representando tudo aquilo que a alma nunca quis se tornar. Apego-me à lonjura do corpo e do espírito, como se fossem dois universos distintos, cada qual caminhando em seu ritmo. Cada qual um olhar.
A mulher se diz indignada com o despreparo dos funcionários para atendê-la, afinal, o chá da tarde é importante de um jeito que subalterno algum deveria rasurá-lo. Benze-se, então, como se Deus estivesse envolvido na sua rixa particular, como se o chá fosse o antídoto para sua vida infeliz.
Aquecer-se com o chá da tarde é o que a faz esquecer que despreparada é ela, mas para a liberdade. Por isso vive à sombra de um homem que chama marido e que mal a encara, procurando sempre algo ou alguém melhor que o distraia daquela mulher que, sabe-se lá o motivo, faz parte da sua vida.
Enquanto sorri um sorriso desbotado, ele lança um olhar indignado à mulher do chá da tarde, a quem tem por mãe há quase quarenta anos. Envergonha-se da fraqueza da mulher que o colocou no mundo, falsifica o afeto que a ela oferece, porque, lá no fundo, todos percebem que ele faz de tudo para não estar no mesmo recinto que ela, que ele a despreza.
Escorrego o olhar para além da janela. Lá fora chove, chuvinha, garoa boa, das que acompanham caminhadas existenciais. E me bate uma vontade imensa de sair andando, sem destino, sem pressa, titular do abandono desse papel que represento em um lugar ao qual jamais pertenci.
A mulher bebe um gole de chá, queima a língua, faz escândalo, exige que o garçom seja despedido. O dono do estabelecimento, amigo de infância a quem a mulher não mais reconhece como tal, sorri um sorriso compreensivo, de quem sabe do que amargou aquela a quem sempre ofereceu benquerença. Diz que não dispensará seu funcionário, porque ele mesmo, o dono, o chefe da tribo, foi responsável pela feitura do chá dela... Como tem sido desde que ela decidiu ser a pessoa que se tornou.
A mulher levanta o olhar, encara o ex-amigo como se ele fosse um inimigo, alertando para que nada nela seja resquício da pessoa que, em algum momento, o quis bem, de quem ela foi ao lado dele. Ele percebe, mas não fecha o sorriso, não se desfaz do carinho que tem por ela, não se despe do sentimento. E o marido bufa, o filho resmunga, ambos preocupados somente com o que pensam e sentem, sem dar mérito algum ao que a consome.
Vejo ali uma fagulha de vida, enquanto o amigo, ainda curvado para que a mulher o veja e escute, enfrenta a teimosia dela em ser completamente vil, e o desprezo ensaiado com qual ela o trata.
Debruço sobre a minha mesa, gerando uma proximidade mínima, mas importante, e os observo, enquanto os homens presentes continuam a se distraírem consigo mesmos.
O amigo da mulher endireita o corpo, e então acena com a cabeça, retirando-se, enquanto arrasta consigo um fardo de tristeza. Imagino o que há entre eles e está invisível ao marido e ao filho. O que eles não enxergam, mas o amigo insiste em acreditar na existência? Por que não há curiosidade entre eles?
A mulher baixa o olhar e pega a xícara de chá, bebendo o líquido com delicadeza que não demonstrara em qualquer outro momento. Eu me aprumo ao perceber o despercebido pelos distraídos egocêntricos... Há ali uma declaração de amor, a cada gole, a cada insinuação de prazer ao sorver o gosto do afeto.
Voltei ao lugar outras vezes, mesmo dia e horário. Marido e filho acompanhavam a mulher, sempre com cara de quem está de mal com a vida. E a cena se repetia... Se não era o chá quente, era alguma sujeira na xícara, no pires, na colher, no guardanapo; algum insulto silencioso do funcionário, motivos que se repetiam, posteriormente. Havia sempre algo que trazia à mesa dela aquele homem de sorriso sincero, que explicava que todos ali a atendiam com todo respeito que uma pessoa merece, e que ele mesmo preparava o chá dela.
Então, houve esse dia, quando o marido e o filho não vieram com ela. Até mesmo a roupa da mulher estava diferente, menos severa, arriscando algumas cores vivas. Os cabelos, sempre presos em um coque, caíam soltos sobre os ombros dela. E desta vez, a todos que a cercavam, a mulher dedicava um olhar mais doce, e um quase sorriso brincava em seus lábios.
Minha alma, ela que sempre se ausentava em tais ocasiões, fez-se presente nessa jornada de observação. Na verdade, ela vinha se alimentando da curiosidade sobre o que havia por detrás de tantas cenas de desaprovação da mulher, e do motivo de fazê-la voltar novamente ao lugar. E foi então que ele apareceu, o amigo, servindo a ela uma xícara de chá, depois puxando uma cadeira e se sentando ao lado dela.
Durante mais de hora, eles conversaram e riram, quase choraram, ficaram silentes. Mas foi quando suas mãos se abraçaram que o cenário se modificou completamente. Diferentemente do marido e do filho dela, o homem a sua frente a encarava com verdadeiro carinho, até certo fascínio. Durante um bom tempo, mãos abraçadas e olhares cúmplices, eles ficaram ali, como se nada mais existisse, além do momento.
Voltei ao lugar outras vezes, mesmo dia e horário, esperando o desenrolar da história da mulher e seu chá da tarde, sua desculpa para ser apreciada, ainda que em segredo. Porém, ela não mais apareceu, e o seu amigo, aquele que sabia como querê-la bem, passou a se debruçar no balcão, permitir que o olhar se perdesse no tempo, lábios secos e nus de sorriso. Tristeza como companhia... Como se a alma dele tivesse escapado do corpo, fugido em busca de onde não há como se estar por inteiro.
Imagem © Jander Minesso
carladias.com
Comentários
a gente nem percebe por onde está sendo levado, só sabe que gosta da sua condução.
Albir... Prometo não conduzi-los a um abismo : )