UMA ESTALAGEM DIFERENTE - 2ª e última parte >> Zoraya Cesar




Em termos de serviços, era uma estalagem igual às outras. Os frequentadores comiam, bebiam, dormitavam de cansaço sobre a mesa, esperavam as horas, conversavam, brigavam. E contavam histórias. Algumas inventadas, mas não menos verdadeiras. Outras, acontecidas, mas, ainda assim, falsas. E outras tão verdadeiras quanto o pior pesadelo. 

Mas os fregureses...  Bruxas, anjos, piratas das estrelas, fantasmas, ciganos do espaço, viajantes do tempo, ladrões de magia, mercenários, tinha de tudo. 

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Tinha caixeiros-viajantes também. 

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Compravam, vendiam, escambiavam produtos, mensagens, conhecimento entre dimensões e planetas. A seleta Escola de Caixeiros-Viajantes de Ñemuhára ensinava os alunos a fazer negócios e a se comunicar e defender em qualquer situação ou lugar. Duendes, humanos, pássaros-plantas, deuses menores, várias espécies se candidatavam à escola. Era uma carreira lucrativa e aventurosa. Mas curta, por perigosa. A morte os colhia ou o estresse os aposentava cedo. 

Yatri era lendário. Jamais perdera um negócio, conseguia o impossível para seus clientes e nunca atravessara uma linha do tempo. Até que um dia, de repente, inexplicavelmente, desistiu de tudo e passou a peregrinar entre bares, como que assombrado por algo que nunca contara a ninguém. 

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Um homem de capuz e vestes marrons ofereceu-lhe uma cadeira e uma bebida. Yatri, como todo caixeiro-viajante, tinha o instinto calibrado. Percebeu o estranho magnetismo que emanava do indivíduo e sentiu que deveria aceitar o convite. E que, nele, poderia confiar. Sem mesmo se dar conta, começou a falar.

- Escapei da morte várias vezes, já fugi de um verme de areia movediça, de um grupo de caçadores de cabeças. Vi muitas coisas lindas e outras terríveis. Nunca me abalei. 

- Até que... – ele engasgou em lágrimas. Ninguém prestou atenção ou olhou duas vezes. Todos ali sabiam que se meter na própria vida era o melhor negócio que faziam. 

- Voltava para meu posto pelo deserto Tywod, alta madrugada. Não sei se você sabe, mas as noites desse deserto são povoadas pelos ectoplasmas de animais mortos em sofrimento. Não gosto disso, só usei aquele caminho porque não tinha opção. 

Ele deu um longo gole na bebida. O homem de capuz acenou para que o copo fosse enchido novamente. 

- Em um trecho especialmente pedregoso, comecei a ouvir gritos. Gritos horripilantes. Tenho pesadelos até hoje. 

Ele parou, pareceu tomar coragem e relatou o resto da história num fôlego só, como se, assim, conseguisse se libertar do fardo. 

- Não eram gritos de fantasmas, eram gritos vivos!  Minha garganta fechou, mal conseguia respirar. Foi o instinto de sobrevivência que me arrastou para fora da estrada. Queria sair correndo, mas minhas pernas tremiam tanto que não consegui. 

- Fiquei debaixo de uma pedra onde a luz das luas não me alcançava, mas não havia nada para tapar meus ouvidos. Os gritos estavam me dilacerando. Senti que se continuasse ali, sem fazer nada, enlouqueceria. Suei tanto que molhei toda a minha roupa, creio que até urinei. Não lembro. 

Ele esfregou as mãos no rosto, como se tentasse apagar uma memória ruim. Não conseguiu. Bebeu mais um pouco. 

- Eu não aguentava mais ficar parado. Os gritos eram uma mistura de agonia, dor, com, como vou dizer, regozijo. Minha mente não entendia aquela discrepância e eu, como alguém arrastado pela visão do abismo, precisava descobrir o que estava acontecendo. Era isso ou perder o controle.

- Não sei como consegui me esgueirar até o local dos estranhos gritos. Tudo o que eu fazia era inconsciente, eu não mandava em mim. 

Ele parou de novo, engolindo em seco repetidamente. 

- O que vi, levei não sei quanto tempo para processar. Tempo demais, de qualquer forma. Tempo demais. Aquela cena nunca vai me abandonar.

E começou a chorar convulsivamente. A um olhar do homem de trajes marrons, o estalajadeiro trouxe um recipiente com carvão em brasa. O homem polvilhou algumas ervas e soprou-as na direção do caixeiro, que imediatamente se acalmou. Um ou outro frequentador se entreolhou. Descobriram quem era o misterioso encapuçado.

- Havia um ser, acho que era um homem, ou um anjo, já não dava para ver. Ele estava todo cortado, com pedaços do corpo físico sendo arrancados a mordidas por pequenos demônios e sua energia sendo sugada por um demônio maior, que parecia se alimentar da dor e do terror do infeliz. Alguns outros dançavam, rindo do espetáculo macabro. 

- Eu tinha de fazer alguma coisa, mas não sabia o que nem como. Nós, caixeiros-viajantes, aprendemos a lidar com diversos seres malignos. Mas eu não nunca vira ‘aquilo’. E estava em pânico. E eram muitos. O barulho dos pés batendo no chão, o sangue escorrendo, os gritos desesperados, a algaravia histérica, os pedaços de carne sendo comidos ou espalhados pelo chão...

- Não aguentei. Fugi. Tive de fugir, deixando um pobre desgraçado para trás. Nunca vou me perdoar. Não tinha nada que eu pudesse fazer, mas nunca vou me perdoar. Abandonei o serviço. Não durmo mais. Espero morrer para esquecer isso.

O cansaço de reviver aquela tormenta o havia extenuado, e o cheiro das ervas completou seu efeito calmanate. Baixou a cabeça e meio que desmaiou. O homem de vestes marrons descobriu a cabeça. Os mesmos frequentadores que antes se entreolharam sorriram, satisfeitos consigo mesmos – haviam acertado a identidade dele. 

Era relativamente jovem. Tinha os olhos cinza prata brilhantes, o queixo quadrado das pessoas firmes e o ar de um homem resoluto, que sabia muito bem qual o seu caminho. E que, qual o caixeiro-viajante, também tivera seu quinhão de coisas terríveis. 

Lucrécio Lucas instruiu seu amigo estalajadeiro para que o homem ficasse ali aquela noite e deixou o contato de alguém que poderia acabar com os pesadelos. Era o mínimo, para agradecer a história que lhe revelara exatamente o que precisava saber: o paradeiro dos Cythraul, demônios comedores de carne e almas que haviam escapado da prisão. 

Lucrécio Lucas não era um feiticeiro, era um caçador. E seu trabalho não tinha fim. Uma nova jornada iria começar

Existem caçadores de emoção. Caçadores de histórias. E caçadores de demônios.






Outras aventuras de Lucrécio Lucas

O Livro dos Carregadores - parte 1 – irmandade dos Carregadores era tão antiga quanto as primeiras palavras escritas. Seus métodos, também. 

O Livro dos Carregadores - parte 2 - se um demônio injeta a Morte Azul em um corpo, não há saída. Ou melhor, há, uma. 

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Catadores de almas - parte 2 - Se a sua alma for roubada por um Catador de Almas, reze para que as pessoas certas vão ao seu resgate

Catadores de almas - parte 3 - a Morte é companheira de todo Combatente. Mas é sempre melhor quando se sobrevive para celebrar a vitória.



Comentários

Marcio disse…
Zoraya, esse negócio de publicar no domingo está reduzindo a taxa de mortalidade dos seus textos.
Resolveu descansar no sétimo dia?
Anônimo disse…
E agora. Já que o caçador descobriu o local onde ficam os demônios devoradores de carne, qual vai ser o próximo cap
ítulo!
Albir disse…
Saudades de quando os detetives perseguiam ladrões de joias e assassinos de humanos, e não comedores de carne e de alma!
branco disse…
instigante!
conto matador deixando em aberto o início de uma nova jornada, desta vez comum personagem principal diferente.
como escrevi antes, instigante!
André Ferrer disse…
O personagem da Zoraya tem uma aliteração por nome. Uma verdadeira onomatopeia de ossos quebrando: Lucrécio Lucas.
Zoraya Cesar disse…
Gente, ler os comentários de vocês me enche de alegria! Valeu! Vamos combinar de nos encontrarmos na estalagem?
Érica disse…
Lucrécio Lucas! Até que enfim ele voltou! :)

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