RENÚNCIA >> Ana Raja


Tu chegas todos os domingos no mesmo horário. Estou no púlpito. Ao meu lado o cálice com o sangue Dele. Nas minhas mãos erguidas para o céu, o corpo Dele. O teu andar. Um pé na frente do outro. A saia que vestes balança com o movimento do quadril. É um requebrar santo. Tuas ancas escondem o paraíso que busco encontrar no término da vida. Quando avanças para mais da metade da nave e te acomodas no banco de madeira maciça, a fervura da liturgia eucarística chega ao fim. Bebo o sangue. Devoro o corpo. Desnorteado ao te ver de joelhos, tento decifrar os lábios que num balbuciar de palavras implora correção. Termino a missa antes do fim. Ordeno que vão para as tuas casas na santa Paz de cristo.

Sandrinha, é assim que os amigos do grupo de oração dos enfermos a chamam. Dona Sandra, para mim. Tens poder de fala, tua reza corre estrada. Há relatos de moribundos com passagem marcada para o outro lado, regressarem ouvindo a ladainha da quase santa. A casa em que habitas, a mesa em que comungas e a cama em que te deitas esbarram na tríade sagrada. Em uma conversa ao pé da cruz, contou-me ser devota de Santo Antão, o santo da renúncia. Um sorriso discreto nasceu em meus lábios. A esperança vaga nos corações dos fracos.

O tempo não passa, nem a febre que mora em meu corpo há quatro dias. Ela não veio rezar a reza dos enfermos. Não entregou a minha alma ao inferno. A imagem que vejo não é da tua chegada, e sim o assombro do meu avesso no espelho buscando fugir da promessa desatinada feita para sustento dos irmãos. Queria mais uma conversa ao pé da cruz. Ter forças para acender vela a Santo Antão, implorando saber como se renuncia. Ao sangue. Ao corpo. Não encontrarei o paraíso nas ancas de Sandrinha. 

Imagem © Pixabay

anaraja.com.br

Comentários

Ana Paula Gasparini disse…
Espetacular!
Claudia disse…
Dá para comungar desse des-perdão.
Albir disse…
Profanando o sagrado ou consagrando o profano? Só sei que é bonito!
Nadia Coldebella disse…
Uau!
Que textaço, hein Ana?
Essa humanização da personagem, o desejo ardendo na carne... Um texto pra lá de provocador, herético até, mas muito muito pertinente.
Sua escrita está na medida certa!
Um grande abraço!
Zoraya Cesar disse…
Ana foi sucinta e certeira. Amei a sutileza do desespero do narrrador, revelando que essa nao era a vocaçao dele, foi forçado por questões econômicas, mas o desejo nao o abandonou. que baita texto, Ana!

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