UM >> Carla Dias


Ele tem sua função na engrenagem da vida. Todos temos, não? Mas diferentemente do que a maioria acredita, ter função, importância, nem sempre significa que o papel da criatura seja digno da benevolência e do cuidado; que ela compartilhará empatia e respeito, que, apesar de  serem palavras explicadoras de necessidade de compreensão, são entortadas com frequência para caber em mundanos desejos particulares.

Ele tem o próprio... o desejo particular, arranhador de tranquilidade que a alma precisa para sobreviver às próprias sombras.

Hoje eu tenho de observá-lo e conduzir seu enredo, mesmo sabendo que o tal pensa que eu, uma mera observadora, seja Deus. E não me levem a mal, mas se levarem, acho válido. Mas é que acredito que Deus adora uma curva sinuosa. Poderia dizer que é somente a minha opinião, mas já ultrapassei o limite da diplomacia religiosa. Penso que Ele aprecia observar no que vai dar. Ele abre a cancela para uma estrada que se estende à frente do sujeito, estrada bem capeada, sinalizada e iluminada; terreno seguro, provedor do caminho certo rumo à... 

Nego-me a pronunciar a palavra.

Na verdade, fiz promessa, não ao Deus, a mim, que ficaria sete dias sem pronunciá-la. Ainda faltam três. Vocês têm ideia de como é difícil evitá-la? Até quando ela não cabe na conversa, na situação, no momento, muda-se o tom e força-se a aplicação da dita porque ela é imponente, faz bem o seu papel. Não fosse a capacidade de deturpar significados à qual se rendem as criaturas humanas desse mundo, talvez, de talvez minguado, ela tivesse chance de fazer a sua parte.

Tudo o que deseja é que o desejo se aquiete até sumir; que ele possa voltar ao comando de si. Espera que o sentimento que o tomou, há alguns dias, desapareça. Não posso desaparecer, tenho contrato para cumprir, e ele exige que eu fique à espreita, sugerindo pontos de virada e momentos de intensa tristeza; criando fôlego para um alívio definhado.

Ao contrário da palavra que prometi não pronunciar durante sete dias, ‘tristeza’ me faz sentir que os personagens-pessoas que observo, a fim de assessorá-los na condução de suas histórias, sejam mais profundos. O que de fato funciona nesse espetáculo de excentricidades que é a vida, é a habilidade da tristeza em fazer as criaturas enxergarem com mais clareza. Nem todas superam a visão que lhes é desferida, muitas se rendem aos seus desesperos. Mas quando a percepção apurada ganha espaço, as pessoas compreendem a beleza das inquietações, das dúvidas, das faltas, porque percebem a validade do óbvio: evitar senti-las é amplificar a capacidade delas de multiplicar dissabores.

Pensava sobre me aposentar, enquanto ele resmungava as orações que nunca decorou. Rezava pedindo para os incômodos se calarem, mas era barulho meu, de enquanto eu os declamava em seu ouvido. Um murmúrio-canção para suavizar mágoas.

A insistência em não reconhecer a benquerença irrevogável desarruma o dentro de uma criatura, especialmente quando a tal enxerga o sentimento como perigo.

Há criaturas que merecem algo melhor do que sobreviver a ininterruptos desafios. Mas Deus, com seu design inovador, fez do ser humano um labirinto. Se em alguém é o vazio que impera, bobagem tentar se enganar, declarando que há nada ali para ser revirado. No vazio, labirintos se tornam ainda mais intrincados e perigosos aos que escolhem visitá-los.

Não posso sair de cena, descansar dos horários comerciais, dos desamparos e explosões de excitação e deslumbre. O que seria de mim sem os passeios pelos cômodos interiores de criaturas escrevendo suas próprias histórias? Certamente me entupiria de açúcar, soníferos e filmes ruins e, para isso, não estou preparada... a não ser por um dia ou dois, depois, eu voltaria.

Há algo de profundamente triste e belo em observar uma criatura que tenta devotadamente enterrar um sentimento que já tomou conta dela. Não tem volta. E que se apega à lista de contras registrada em sua mente, que, apesar de acostumada ao controle, aventura-se diante do apreço inédito. Assim, reconhece perigo no que nasceu para ser remanso.

Enquanto rezava ao Deus, pedindo que Ele calasse o que cabe a mim sussurrar, para que assim ele possa compreender sua própria história, aconcheguei-me em seu desejo desacatado pela crueldade da lógica de não ser o esperado. Como descartar a verdade de que quase tudo não é o esperado? No desejo dele, havia alento e ternura; a beleza da genuinidade do sentimento; a possibilidade de respirar fundo sem pensar que, ao soltar o ar, a vida o abandonaria.

Sabia que observadores-narradores não choram? Aposto que o fazem escondido. E com meu intrometimento aguçado, choro alto mesmo, feito atriz de telenovela. E a criatura me escuta e pensa que é apenas a chuva batendo na janela.

Imagem La Llamada © Remedios Varo

carladias.com.br

Comentários

Albir disse…
Que beleza e profundidade, Carla, como sempre!
Nadia Coldebella disse…
Texto lindíssimo!
As vezes não sei se realmente compreendo todas as camadas. Preciso ler duas, três, quatro vezes até me certificar que racionalmente sequestrei alguns significados. Outros, apenas surgem.
É como sempre digo, texto-terapia. Que dá pano pra manga.
Zoraya Cesar disse…
Concordo plenamente com a Nádia. Esse é um daqueles que a gente lê gostando demais nem sabe por quê. E qdo chega ao final nao sabe se entendeu, apenas gostou. Pra nao me sentir meio burra com minha falta de compreensão, desligo a racionalidade, lembro que estou num texto da Carla Dias, e solto o inconsciente, a sensibilidade, até o nonsense. E flutuo de novo, num novo aspecto da compreensão. Carla Dias e suas camadas...

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