O ESTRANHO MUNDO AUTISTA DOS NÃO AUTISTAS >>> Nadia Coldebella

Essa reflexão começou com uma conversa com Lord White, quando falávamos da beleza da poesia. Ele é um grande poeta e eu me arrisco às vezes nessa seara, não com a mesma qualidade. Estou mais para uma poeta-cientista que faz alguns experimentos com imagens e palavras, porque eu penso por imagens. Então, antes de escrever uma história, são imagens que vem na minha cabeça e eu procuro descrever exatamente o que vejo nessas imagens. 

Imagens são o que são, mas, com a tecnologia, dá pra dar uma editada aqui, outra ali, uma espichada, uma cortada, uma corzinha… Pode ser que no final de tudo, o que a pessoa tenha em mãos seja algo bem diferente daquela imagem inicial. Como eu também gosto de pintar, acredito que a tecnologia é ótima aliada, porque dá pra gente falar muito apenas com as metáforas que a imagem, editada ou não, pode propiciar. Nesse ponto da minha conversa com o Lord, contei a ele que era muito curioso conviver com uma criança autista - a minha filha, no caso - porque elas não compreendem metáforas. 

Aqui faço uma digressão muito importante: o autismo é uma palavra de origem grega (autós), que significa “por si mesmo”. Tem sido usado na psiquiatria para denominar comportamentos humanos que se centralizam em si mesmos, voltado para o próprio indivíduo. Quer dizer, pressupõe, a psiquiatria, que minha filha é um indivíduo com um universo só dela. Guarde bem isso, caro leitor. 

Como eu dizia, é curioso conviver com ela, porque pessoas autistas não compreendem metáforas. O mundo para um autista não tem subentendidos, indiretas, coisas deixadas no ar. Eles não captam as segundas intenções e quando segundas intenções ficam implícitas, eles compreendem o que é dito, ao pé da letra (inclusive, se eu disser a minha filha que ela compreende as coisas ao pé da letra, tenho certeza que ela vai imaginar letras com pezinhos e um monte de coisa colocada lá). 

Em resposta a minha observação, Lord White me disse: Meu pai me dizia que, quando alguém te perguntar as horas, responda a hora que está no seu relógio, assim fica claro que horas são. Essa exatidão é muito trabalhosa. 

Aqui em casa, nos esforçamos para um afinamento na conversa, uma explicitação que nem sempre é confortável de fazer, porque se comunicar sem os subterfúgios da língua dá o maior trabalho. Mas a gente tem se adaptado, pouco a pouco, tentando lidar com o sincericídio da minha filha. 

Sincericídio é uma expressão que ouvi, certa vez, num podcast feito por um jovem autista, em que ele explicitava o grande conflito que vivia em função da sua absoluta falta de capacidade de entender metáforas e sutilezas, incluindo comportamentos não-ditos e subentendidos. Ele fazia muitos desafetos por ser absolutamente sincero em suas observações. Era interessante observar que ele estranhava o fato de as pessoas se perturbarem quando ele dizia francamente o que observava. 

Eu sou uma pessoa bastante franca, mas em geral, digo o que digo com muita gentileza e sutileza. Minha filha, porém, não é tão sutil. Como certa vez, quando viu uma pessoa bem acima do peso, com uma roupa justa, soltou: 

- Nossa, você parece que está grávida, mas está gorda, não é? 

Ou em outra situação: 

- Não gostei dessa comida, achei muito ruim. Você cozinha mal. 

 Ou ao acordar e olhar para minha cara amassada: 

- Bom dia, mãe! Você tá com cara de velha hoje. 

Ela é totalmente sem filtro. Na primeira e na segunda situação, quis esconder minha cabeça num buraco. Na terceira, quis colocar a cabeça dela no buraco. E eu tenho uma lista enorme de situações como essas. 

O fato é que toda a competência que construí durante anos de cuidadoso estudo vai para o ralo quando se trata da minha filha. Na verdade, ela é incapaz de compreender porque as pessoas reagem da forma que reagem, pois na cabeça dela, aquilo é apenas uma constatação objetiva da realidade que ela observou. A intenção por trás das palavras, a implicitude, o duplo sentido, a indireta, o desejo da ofensa não-dita, tudo isso está na cabeça das pessoas que recebem a observação feita por ela. 

Estas pessoas geralmente respondem de forma estúpida e agressiva, pois se sentem atacadas e levam para o lado pessoal as observações feitas. Basicamente, porque a gente espera uma mentira social e ela é incapaz de fazer isso. Ela nasceu com uma incapacidade biológica para mentir. Estranhamente, isso é um problema para toda pessoa que entra em contato com ela. Estranhamente, as pessoas esperam que ela desenvolva essa capacidade. Estranhamente, muitas vezes a pressionam, ignorando completamente o fato de que essa condição não é possível. E isso é algo intrigante. Porque será? 

Acontece que a mentira é um jeito fácil de obter poder, dinheiro e riqueza (melhor que matar). Alguns cientistas apontam a mentira como uma necessidade evolutiva para nos proteger do mal (como assim?), de se fazer amar, beneficia a pessoa no trabalho e na vida pessoal. Já imaginou você contar para o chefe o verdadeiro motivo do atraso? Ou dizer abertamente o que pensa sobre as pessoas? Ou contar de forma muito calma, as pataquadas que fez? Melhor mentir, porque temos medo de ferir e ser feridos e por causa disso, não estamos prontos para encarar a verdade.  Portanto, mentimos (socialmente, pelo menos) porque nos preocupamos conosco mesmos ou com o que as pessoas pensam sobre nós. Mentimos porque queremos garantir que nosso mundo, nosso universinho pessoal, não se transforme em ruínas. 

Curiosamente, é ela quem é chamada de autista e tratada, mesmo que sutilmente, mesmo que implicitamente, mesmo que indiretamente, como a estranha, a aberração. A minha sorte é que ela, na maior parte do tempo, só percebe a hostilidade, mas não compreende o que está por trás das palavras e olhares cruéis. 

Sinceramente, é algo para, pelo menos, se pensar.


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O podcast que eu falei: https://www.introvertendo.com.br/

As poesias do Lord White: https://thehouseoflord.blogspot.com/?m=1 

Comentários

sergio geia disse…
Nádia, outro dia comecei a ler sua crônica pelo celular e parei. Pensei: não. Esta crônica da Nádia precisa ser lida com calma, de preferência numa tela bem grande. E hoje, neste domingo de céu azul em Taubaté, quente de verão embora outono, eu me entreguei à leitura. Que delicadeza de crônica, Nádia. Obrigado por me ensinar coisas que desconhecia, com uma delicadeza singular.
Zoraya Cesar disse…
NádiaBella, Countess Velvet, que crônica maravilhosa. E me lembrou muito O Alienista, de Machado de Assis, no qual o médico acabou concluindo que os loucos eram os normais e os normais foram para o hospício. Quem disse que 'nós" somos os normotípicos? Quem sabe o normal seria sabermos viver em sociedade sem rancores e sem filtros? Deus me livre da sinceridade da Stelinha hahahah, vc tem a obrigação moral de escrever mais sobre ela! Artista, linda, engraçada, querida!
Nadia Coldebella disse…
Muito obrigado pelo retorno, queridos!

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