SALAFRÁRIO >> Allyne Fiorentino

 


— Você vai ficar com aquela vagabunda mesmo, Giovani? Mas a gente se ama. Pelo menos, eu achei que a gente se amava. 
 
Da janela da minha casa eu nem precisei apurar os ouvidos, a discussão era travada em alto e bom som, pelo menos da parte da mulher que estava ao telefone. Imagino que o Giovani, do outro lado da linha, estava falando baixinho, com voz e cara de bobo como qualquer homem em uma situação dessas. 
 
Ultimamente a minha rua tem sido palco de muita lavação de roupa suja, mesmo se eu quisesse fugir da fofoca não conseguiria: por que todos falam tão alto? Talvez as pessoas fossem mais tolerantes a esses barulhos antes de estarem em home office ou o fato de estarem convivendo com menos pessoas tenha aguçado o sentido selvagem da coisa toda e o grito passou a ser o tom natural. Eu não sei, só sei que minha cara de vergonha alheia quando entro em alguma reunião on-line quer dizer “eu não conheço essas pessoas das vozes ao fundo”. Ok? 
 
— Você sabia que ela queria alguma coisa, Giovani. Por que você foi aí? 
 
Tiro o fone de ouvido e me debruço um pouco na janela pra ver o rosto dessa mulher. Imaginava uma mulher com uns 50 anos talvez, mas acho que ela deve ter uns 39, está vestida com uniforme estilo macacão, com cores neon, o que indica que ela trabalha em alguma obra ou coisa do tipo. Deve estar no horário de almoço e aproveitou pra resolver sua vida amorosa no tempo justo de uma hora. 
 
Me dei conta de que se eu quisesse discutir sobre um assunto sério, seria com essa mulher. Apesar de estar forçando suas cordas vocais em um desespero irracional da possibilidade de perder o Giovani, sem se dar conta de que o tal Giovani parece nunca ter sido dela e menos ainda agora que parece ter fugido para a casa de outra... não ouvi nenhum xingamento saindo da boca dela. Tá aí uma mulher elegante! Ou sem criatividade! Eu no lugar dela teria descarregado um arsenal de palavrões – para mandar o Giovani embora de vez, claro, não para trazê-lo de volta. 
 
Essa falta de criatividade, de viço, esse medo de usar as palavras está matando até os bons xingamentos, aqueles que te faziam abrir a boca e pensar “que ousadia, meu rapaz”. Mas hoje parece que você “dá a ousadia”. A primeira vez que alguém me disse “eu não te dei a ousadia” eu fiquei perplexa, mas foi de não entender essa construção gramatical mesmo. Fora isso, os xingamentos agora costumam girar em torno de alguma coisa com final fóbico(a), alguma coisa com final “naro”, “narista”, “nista”, “dista”, alguma coisa início “pré” e final “oso(a)”... Tudo muito chato, repetitivo e sem criatividade. 
 
Melhor que a (ex)mulher do Giovani, outro dia um senhor que também achou que a porta da minha casa era um lugar aconchegante para “dar uns xingos” soltou ao telefone um berro delicioso: “SEU SALAFRÁRIO”! Uau! Quanto tempo eu não ouço um xingamento complexo como esse. Fiquei feliz e aliviada de que ainda há a possibilidade de que em algum momento de raiva, de bastante raiva mesmo eu posso ser xingada de salafrária por alguém – palavra que nem é mais reconhecida, quando grafada no feminino, pelo corretor do Word, que acabou de sublinhá-la de vermelho. Podem fazer o teste! Talvez o corretor esteja caindo no alienado conto do “e” ou “x” no final também. E digo “alienado” como xingamento porque de uns tempos pra cá passou a ser mais um adjetivo conformista do que qualquer outra coisa. 
 
Aliás, o corretor automático tem sido um aliado poderoso na desconstrução das frases feitas, deixando-as mais poéticas, mais surrealistas, tornando uma conversa comum de WhatsApp um exercício de criatividade. “A realidade vai se tornar um crime”, foi a frase que minha amiga me enviou! Muito mais poética do que a frase original que ela queria escrever e o corretor não deixou. 
 
— Volta para casa, Giovani. Eu faço o que você quiser! 
 
Ah não! Isso já é demais... uma mulher se humilhando assim como se um homem fosse especial o suficiente para isso. Eu não vou aguentar, vou ter de gritar de volta: 
 
— Ai, moça, por favor, tem muito homem no mundo! Você merece mais do que isso! A maioria é salafrário, mas ainda tem muita opção por aí e ficar sozinha também é uma dádiva — e eu com meu coração de gelo e na falta de uma frase que pudesse defender o amor, soltei ao final: 
 
— A realidade vai se tornar um crime! Pense nisso... 
 
 

Allyne Fiorentino é mineira e mora em São Paulo. Mestra em Estudos Literários pela Unesp, especialista em Design Instrucional e graduada em Letras Português/Espanhol pela UFTM. Atuou na área de pesquisa de Teoria e Crítica da Poesia, Simbolismo brasileiro e hispano-americano, estudando os autores Cruz e Sousa e Rubén Darío. Atua na área de novas tecnologias aplicadas à Educação a Distância e autoria de material didático. É apaixonada por Literatura Feminina como instrumento histórico-social para compreender o papel atribuído à mulher na sociedade e o feminismo.

* uma parceria com O bule! http://www.obule.com.br

Ilustração: Pixabay

 

Comentários

Anônimo disse…
Muito bom e divertido o texto.
Zoraya Cesar disse…
gostei de tudo, principalmente do final: ' a realidade vai se tornar um crime". Acho q já virou.

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