UM DIVÃ PARA TIONEL >> Albir José Inácio da Silva

 

O Tionel que retornou da tomada do poder em Brasília nada tinha com o que saiu há dois meses. A solidão da cadeia, o desamparo e as preocupações com a Bel na Colmeia derrotaram Dom Quixote de um modo que a vida nunca tinha feito.

 

Até os amigos, a quem ele assediou politicamente antes da viagem, ficaram com pena. Se não agride ou ameaça, também não sorri, não vai à praça nem cumprimenta ninguém. É um fantasma envergonhado, sente remorsos porque o joelho de Bel piorou na cadeia, e ela agora usa bengala.

 

Por generosidade ou misericórdia, arranjaram-lhe alguma terapia. Com acolhimento e isenção, a psicóloga ouviu monossílabos e silêncios.

 

Depois que ele saiu, ela demorou a chamar o próximo paciente.  Ficou pensando na quantidade de brasileiros com as mesmas dores.

 

Num mundo de classes, castas e desigualdades, coisas complexas e explicações difíceis ou inacessíveis podem humilhar, dar a impressão de que se é inapto, desajustado, simplório, e inferior.

 

Aceita-se porque não há outro caminho. Os “outros” são especialistas, tem discurso bonito, são respeitados, leem, escrevem, publicam.

 

O jeito é continuar obedecendo, aceitando o que não se entende, muitas vezes com inveja, raiva e despeito pelos “superiores”.


Mas isso não fica bem na alma. Principalmente porque os “sábios”, os “intelectuais”, não consideram esse saber apenas uma contingência, uma circunstância da vida que lhes permitiu melhor acesso às informações, às escolas, a uma família com livros e leituras.

 

Pelo contrário, esse conhecimento formal é ostentado como superioridade pessoal e moral, um tipo de gente melhor, mais competente e mais “abençoada.”

 

Fica o miserável com a certeza de que tem não tem qualidades, tem menos inteligência, não se esforçou o bastante e, por isso, não alcançou o que ele enxerga nos outros.

 

 Aí aparece alguém dizendo que toda aquela complicação não existe, que é ciência dos homens, corrompida, para desviar os cidadãos de bem; que é só uma maneira de ludibriar, de corromper as coisas em que se deve acreditar, destruir os valores cristãos.

 

Isso vem ao encontro de suas angústias, e ele recebe uma verdade revelada e simples, como a Bíblia na interpretação dos charlatães e vendilhões do templo.  Tais lideranças não acreditam em terra plana, tomaram vacina em segredo e criaram ideologia de gênero. Mas querem atrair, com seu discurso simplista, o humilde.

 

Este, por sua vez, só queria dominar algum tipo de conhecimento para contrapor às explicações inacessíveis e humilhantes.

 

Quando a coisa explode, recolhem-se os manipuladores às suas mansões como se nada tivessem com aquela malta.

 

Enquanto isso os Tionéis, mais humilhados que antes, silenciam, respondem com monossílabos e viram chacota até entre seus pares.

 

E Dra. Nádia olha o seu divã como se uma multidão tivesse desfilado ali seus ressentimentos. Sabe que precisaremos de muitas sessões, por muitas gerações, para resolver a humilhação estrutural.

 

Chama o próximo paciente.

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Dom Albir!

Primeiro, fiquei emocionada e grata pela gentil e bondosa referência, mas essa Dra. Nádia aqui confessa que a sua doutora ai parece um ser humano bem melhor do que eu poderia ser.

Veja, andaram matando um Dom Quixote em mim tbm, embora eu lute todos os dias com moinhos de vento. A sua doutora é paciente e equilibrada, eu ando ressentida e cansada - sou uma provável paciente.

Conheço muitos Tioneis e sei que eles se importam, mas penso que é só com seu espaço pessoal. Não tenho nenhuma paciência ou dó. Deveria, mas não tenho, porque eles simplesmente não aprendem e se puderem, farão de novo pois estão convencidos, apesar de toda a argumentação lógica, que lutam pelo Santo Graal. (Guarde minhas palavras: farão, se puderem)

Confesso que é difícil equilibrar a profissão e a amargura que sinto quando vejo holerites de 50 mil na mão de pessoas que só tem seu próprio umbigo como preocupação. Entre outras coisas.

Por outro lado, tem muita sabedoria no seu texto. Ele coloca as coisas no lugar e em perspectiva, o que, de certa forma, é balsâmico para os ressentidos de plantão!

Um grande abraço!
Zoraya Cesar disse…
Um momento de compaixao silenciosa por todos os Tioneis. Quem nunca se enganou na vida? E os mais fáceis de se manipular são os de bom coração. Um momento de compaixão silenciosa por todos os Tioneis que tomaram a pílula azul. Pq deles não é o reino dos ceus e ainda fazem do reino daqui um inferno, pq a ingenuidade e a ignorância nao prejudicam só quem as tem, mas todo mundo em redor.

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