REPARO >> Carla Dias
É conhecido de passagem. Para alguns, ele mora na rua de esquina com a do pequeno restaurante charmoso, o de toldo precisando ser trocado.
Compreende que as pessoas não esquecem das esquinas onde vivem restaurantes como aquele, repletos de histórias dos que vivem no entorno. O perfume das comidas, o tilintar dos copos em nome da celebração, o café antes de ir embora são redes de proteção para qualquer estrago tecido pelo tempo.
Acredita que pessoas perdoam estragos cometidos pelo tempo em coisas, mas nem sempre em seus semelhantes ou em si mesmas. Para ele, a questão não é o tempo em si, mas a falta de capacidade de percebê-lo passar com a agilidade que lhe é própria. Escutou a repetição das mesmas palavras, enquanto crescia sob o comando das levezas oriundas de suas desatenções, e as ignorou, como seu pai fez um dia. Hoje, as palavras dele ecoam diferente na sua memória: o tempo não se interessa por você. Ele vai passar porque nasceu com essa função, e não importará o quanto isso lhe fira o ego, o corpo ou a mente.
Outra coisa que aprendeu sobre o tempo: há aquilo que ele insiste em manter na memória, mesmo quando o afligido pelo acontecimento se dedica a não se render à lembrança; quando há algo de valor que o tal não consegue imaginar ser arrancado de seu dentro para ser desaguado em emoções que não pode controlar.
Que é impossível controlar o que o tempo decide manter pulsando dentro de uma pessoa.
Para ele, o espetáculo do esquecimento tem coreografia indecifrável. Tortuosos movimentos, que escandalizariam especialistas no assunto, enchem os olhos da sua imaginação de encantamento e provocam ruminação. Sua mente sofre de falta de espaço para hospedar pensamentos revolucionários, caraminholas divertidas, reflexões de fracionar certezas até anular suas partes. Conhece suas limitações, mas confia ter chegado ao mundo na companhia vitalícia do assombro, um exasperador competente de esquecimento.
Não há remédio, gente, acontecimento capaz de lhe arrancar a capacidade de registrar memórias fáceis de serem descartadas pela cadência da rotina ou pelo medo da proximidade.
A proximidade lhe parece reveladora por natureza, concebida para desmascarar até enganação acolhida no afã do temor. Aproximar-se do outro — ou de si, depois de insistente afastamento — é se expor até se permitir aproximar dos desfiladeiros e lançar-se aos voos rasantes, nem sempre em combinação que ofereça perigo com direito ao resgate.
Tem dias em que aquilo que fere pontua importância com clareza necessária.
É conhecido ali, na rua que faz esquina com o restaurante charmoso que nasceu e vive há mais de cinquenta anos no bairro, porque se tornou um transeunte sem paciência para a conversa fútil. A mãe vivia a lhe cobrar reconhecimento do valor que elas carregavam, mas ele nunca foi bom estudante. Frustrava-se com a incapacidade própria de compreender os dizeres dos outros, que lhe chegavam tão irrelevantes. Ela dizia que ele poderia estudá-la melhor para não perder o simples que chega, silencioso, inspirando fascínios indispensáveis para que não se morra de ausências.
Não aprendeu a beleza de escutar o que não lhe interessa sem buscar refúgio nos próprios pensamentos.
Acredita que a vida poderia ser mais apreciável se compartilhasse com outros as poucas horas que lhe sobram depois de um dia de trabalho, mas escolheu o oposto, restringindo não somente relacionamentos, mas também oportunidades que só chegam aos que se lançam aos riscos.
Gosta do que nunca experimentou; sente prazer com um repertório de consternações. Nega explicações aos que não querem de fato saber sobre ele, mas apenas cavoucar alguma sensação que os justifique em seus cenários racionais e emocionais.
Decidiu, apenas para resolver pendências, o quem é, como trafega pelo mundo, qual é a origem, não somente da sua pessoa; mas da sua essência. Há dias em que ela lateja para reverberar erradas. Envolve-se com indelicadezas retumbantes, no cometimento e no recebimento, um escambo que serve para o céu e para o inferno. Ainda assim, é de reparar no que insiste em inspirar criaturas iguais a ele a não se tornarem esquecimentos adormecidos na pele morna da indiferença. Aos pequenos escândalos, segue cometendo consertos: amparo, escuta, empatia, mas sem se vergar a quem busca somente soltar o que tem represado e se agarrar a um alívio minguado.
Avisou o patrão, mais uma vez, sobre o reparo necessário, e ele disse que ainda não estava na hora de resolver o problema. Conformou-se com o conformismo do outro e foi cuidar de limpar as mesas.
É conhecido como alguém que está sempre de passagem, apesar de permanecer no mesmo lugar há uma vida. As pessoas gostam de falar sobre ele: o silêncio inquebrável, a inabilidade em socializar, o quanto não se importa com os outros, nem lhes dá atenção. Gostam de falar sobre a versão dele, de quando se despe do uniforme e caminha até sua casa.
Feito um assunto-fetiche, comentam que ele precisa de reparo, enquanto o próprio lhes serve o café e entrega a conta. Há dias em que isso não importa. Há vezes em que sim. E há quando só consegue pensar no toldo. Um dia, o reparo de ambos se tornará inegociável
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