AO SOM DE "O MUNDO ANDA TÃO COMPLICADO" >> Sergio Geia

 


2016. Era o show de uma banda cover do Legião Urbana num bar lotado de gente, boa parte de minha faixa etária, claro: o Porca. 
 
Havia também jovens mais jovens, o Porca é pra eles, e isso era fácil de notar pelos garçons, que só traziam cerveja long neck. Reparei: a moçada bebia a cerveja no bico. Eu gosto de espuma. Como ter espuma bebendo no bico? Aliás, qualquer bom tomador de cerveja deveria gostar de espuma e isso nada tem a ver com a idade, o bom e velho colarinho é mais do que importante na bebida. Portanto, não me constrangi em chamar o garçom e pedir um copo pra tomar minha cerveja; foram muitas. 
 
Sempre fui fã do Legião, das letras do Renato, da guitarra do Dado. Um dos discos que eu mais ouvi em casa na minha juventude foi o Dois, lançado em 1986, com a icônica Quase sem querer, que eu tanto toquei com meu violão para os amigos. 
 
Rever aquele som então estava sendo um barato. Mas, diferente de muitos, sempre gostei das músicas menos tocadas na rádio. A maioria queria ouvir Eduardo e Mônica, Quase sem querer, Faroeste caboclo, Pais e filhos. Eu queria Fábrica, Vento no litoral, Giz e, claro, O mundo anda tão complicado. 
 
Tenho um amigo músico que não gosta do Legião. Diz que na parte melódica, as notas são rudimentares, falta mais trabalho e sofisticação. Como é um entendido no assunto, um cara que tocava na noite, eu respeito. Ainda assim, gosto, gostei e continuarei a gostar por muito tempo. Mas o que me arrebata mesmo nas canções do Legião é a letra. Eu sou um cara das letras, aliás, acho que deveria ter feito Letras ou Jornalismo, e não Direito. 
 
O Mundo anda tão complicado é uma música ingênua. Gosto da melodia, mas a letra, ah, a letra, tão inocente e explorando as nuances do cotidiano, tal qual uma crônica, me pega de jeito. Talvez seja isso. A resposta para eu tanto gostar dela: crônica. É uma música-crônica. 
 
Gosto de ver você dormir, que nem criança com a boca aberta; temos que consertar o despertador, e separar todas as ferramentas, que a mudança grande chegou, com o fogão e a geladeira e a televisão. Não precisamos dormir no chão, até que é bom, mas a cama chegou na terça, e na quinta chegou o som. Crônica pura. 
 
Vamos chamar nossos amigos, a gente faz uma feijoada, esquece um pouco do trabalho, e fica de bate-papo; a gente precisa tanto. Vem cá, meu bem, que é bom lhe ver, o mundo anda tão complicado, que hoje eu quero fazer tudo por você. 
 
Então lá estava eu, ouvindo e cantando Legião. Mais pro fim do show eles perguntaram o que a gente queria ouvir. Não pensei duas vezes. Em pé, no meio da pequena galera amontoada ao entorno do palco miúdo, com o meu copo de cerveja na mão, gritei o máximo que podia O mundo anda tão complicado, uma, duas, várias vezes. 
 
Tocaram de tudo, as mais conhecidas, e meu gritar talvez tenha ecoado apenas no ouvido daquela que me dava as mãos — era um início de namoro; ela deve ter sentido pena de ver o pobre Geia bradando como um louco no deserto. 
 
Minha dúvida: será apenas eu, esse cinquentão, que curte O mundo anda tão complicado? Ninguém mais? 
 
Hoje, porém, lendo Zeca Camargo — suas crônicas de viagem na Folha são ótimas —, encontro este parágrafo incrível na crônica Contra o tempo, vento a favor, publicada em 12/10/2022: 
 
Tenho me emocionado bastante recentemente. São os tempos, dirão os impacientes. (...) Chorei com a recuperação da saúde da minha mãe. Com o primeiro sorriso do meu sobrinho recém-nascido. Com um belo pôr do sol em Belém e até, inesperadamente, ouvindo outro dia "O Mundo Anda Tão Complicado", do Legião Urbana. 
 
Meus Deus! Enfim encontrei alguém que também se emociona com O mundo anda tão complicado. Não, o mundo não está perdido, pensei, embora ande complicado, muito, muito complicado. 
 
 
Ilustração: Pixabay
 
Animação O mundo anda tão complicado: Sushi Tanaka
 

 

Comentários

Manoel Nunes disse…
Li,ouvi,li,ouvi, que legal!
Tenho um amigo, servidor aposentado do TRT15, que após anos de terapia chegou à conclusão que o mundo não é complicado. Complicado é uma coisinha que começa com Z: o Zotro rs.
sergio geia disse…
Caro Manoel, seu amigo é um sábio rsrs. Feliz em saber que ouviu Legião e que a crônica foi inspiradora para você.
Zoraya Cesar disse…
hahah, gostei do comentário do Manoel, o amigo dele reinventou sartre e ficou melhor kkkk. Serginho, anda complicado e dolorido e não parece q vai melhorar. Mas ler vc sempre nos tira um pouco desse faroeste cabloco triste e nos traz um vento do litoral,
Nadia Coldebella disse…
Como respondo essa crônica? Só com Legião.

"Estava chorando. E foi então que eu percebi" (Quase sem querer)
"Que a vida continua e se entregar é uma bobagem" (Vento no litoral)
"Escuridão já vi pior. De endoidecer gente sã. Espera que o sol já vem" (Mais uma vez)
"São as pequenas coisas que valem mais" (Um dia perfeito)
"Temos todo o tempo do mundo" (Tempo perdido)
"E nossa história não estará pelo avesso. Assim, sem final feliz, teremos coisas bonitas pra contar" (Metal contra nuvens)
"E acreditar que o mundo é perfeito e que todas as pessoas são felizes". (Indios)
"Um mundo onde a verdade é o avesso e a alegria já não tem endereço". (Clarisse)
"E daí, de hoje em diante, todo dia vai ser o dia mais importante".(Lobisomem juvenil)

Quem sabe, no fim, a gente descomplica?
Muito obrigada pela crônica!
Grande abç!
sergio geia disse…
Zoraya e Nádia, que delícia ler vocês hoje, ao som do Legião. Que essa poesia nos inspire e nos faça melhores.

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