AS FLORES DE KAMTEDARA - Tudo é o que parece. Só não vê quem não pode >> Zoraya Cesar


Podem as feministas esbravejar e soprar e soprar. Mas toda mulher quer casar. Nem que seja pra descasar depois, nem que o casamento seja fake, nem que ela seja qual a vespa da montanha, que não precisa de macho para reproduzir. Vai dar um jeito de casar. A gente vê essas celebridades casando e recasando infinitas vezes. Deve ser bom.

Mas atenção, isso não é uma dissertação sobre o casamento. Não, não, não. É sobre mim. Eu, Nyoka Duwa, descendente de uma tribo que se modernizou sem perder as tradições. E guardem bem isso, porque é importante para o que vou contar.

Eu também queria casar. Na minha família a mulher pode ser o que quiser, desde que case. Pode se separar, enviuvar, fugir, ser abandonada, não importa. Mas tem de casar ao menos uma vez.

Msuzi era um homem gentil, trabalhador, pacato, e tinha uma boa terra, que dava bons rendimentos. Depois de um ano, casamos.

Agora é minha vez, e tentarei não me gabar. Também sou gentil, trabalhadora, pacata e gostava muito de Msuzi. Afinal, para casar, o mínimo que se pede é gostar, né? Eu não brigo, não levanto a voz, faço tudo para evitar uma contenda – sabe aquele ditado ‘dou um boi para não entrar numa briga e uma boiada pra não sair’? Pois eu dou uma boiada para não entrar e duas boiadas mais um cavalo pra sair correndo. Minha mãe sempre disse que eu era pacata demais, podiam abusar de mim, mas isso nunca me aconteceu.

Até ‘ela’ chegar.

Jahata.

Minha sogra.

Chegou sem avisar e foi logo se instalando, como era direito dela. Na minha tribo, a mãe do marido podia chegar e mandar na casa, a nora que se virasse, pois só o filho tinha o poder de mandá-la embora ou colocar ordem na coisa. Mas Msuzi era um filho obediente e manso, não tinha pulso contra a mãe.  

Jahata nunca fora simpática comigo, mas eu tinha estudo, uma herança modesta e Msuzi gostava de mim. Ela me engoliu em seco. Engoliu e depois do casamento me mastigou e cuspiu e ainda me esfregou no chão.

Acordo cedo, as tarefas do nosso pequeno sítio eram constantes e árduas, quem trabalha com a terra sabe como é. Do amanhecer ao anoitecer é trabalho, trabalho, trabalho. Minha única ajudante, que fazia a comida e limpava a casa não aguentou Jahata. “Essa comida parece lavagem” gritava, jogando o prato no chão. “Essa casa é uma pocilga”, acusava, e espalhava de volta toda a sujeira e pó que minha pobre ajudante havia jogado fora. Deixava papel sujo jogado no chão do banheiro, as ‘obras’ boiando no vaso. A velha parecia comer urubu putrefato, empesteava a casa toda e o cheiro grudava nas paredes.

Eu nem podia passar óleo de manga-açucena na casa, para ela não se ofender. Tínhamos de fazer as refeições aguentando aquela inhaca. Saqra, o demônio da fedorência, devia estar feliz.

Conversei com Msuzi, mas ele achou implicância minha, afinal estávamos acostumados ao cheiro do excremento dos bois, galinhas e cavalos, vai ver que era isso que sentíamos e não o odor nauseabundo da mãezinha dele.

Jahata era gorda, vaidosíssima. Usava roupas coloridas e exuberantes, colares e pulseiras ainda mais coloridos e exuberantes, perfumes, tomava dois banhos ao dia. Depois que chegou à minha casa, só usava uma camisola rota, quase não tomava banho, não usava desodorante e, por Taÿtacha!, comia de boca aberta. Isso é considerado muito, muito desrespeitoso em nossa cultura. Passava as refeições reclamando de tudo, com a boca escancarada expelindo perdigotos em todas as direções.

E eu não entendia o porquê daquilo. Pois eu a tratava com todo amor. É da minha natureza. A gente não pode fugir da própria natureza. Fazia os pratos que ela mais gostava, trocava a roupa de cama sebenta por roupas limpas e cheirosas (bem, era meu dever cuidar da minha hóspede. Minha cultura leva isso muito a sério). Fazia isso tudo e muito mais.

De nada adiantou. Dizia que a comida estava queimada ou azeda, que eu não sabia cozinhar, ela ia morrer de fome (embora raspasse o prato). Reclamava que os lençóis fediam a ferrugem com bosta de vaca.

O pior foi quando Msuzi veio falar comigo. Comigo!!! Disse que a mãe dele não se sentia bem na casa do próprio filho, que ele sabia que eu não fazia por mal, mas devia me esforçar mais.

Só não matei meu amado Msuzi ali mesmo porque ele fora criado assim, não tinha culpa. Resolvi me esmerar mais. Quem sabe ela não estava passando por uma crise de ciúmes, de doença, qualquer coisa? Ademais, como já disse, sou muito pacífica e gentil.

Ha! Ledo engano. Jahata passou a sabotar a comida que eu preparava, entrava com os pés sujos de lama assim que eu acabava de limpar a casa, andava atrás de mim até quando eu estava na lida da terra. Eu estava enlouquecendo.

Orei a meus ancestrais pedindo luz. E de repente entendi o que ela pretendia. Como não vi antes?

Na minha cultura, a mulher pode se separar por um bom motivo. Menos por causa da sogra. Sogra é carma. Certas tradições demoram mais a serem quebradas. Enfim. Jahata queria que eu abandonasse Msuzi por causa dela, assim ele ficaria com tudo e eu com nada. Ele é que não podia me abandonar, na minha tribo, o homem que abandona sua mulher deixa tudo para trás. Nossa cultura pode parecer esquisita para os de fora, mas é muito justa.

Alguns dias depois dessa iluminação, a própria Jahata teve a desfaçatez de dizer isso na minha cara, numa hora em que estávamos sozinhas. Disse que ia se mudar de vez, porque eu não era boa o bastante para Msuzi, ele merecia mulher melhor. Ela pretendia dizer ao Conselho de Anciãos que eu era preguiçosa e má esposa.

Passei a noite chorando no galinheiro. Eu não merecia aquilo, trabalhava como uma moura desvalida, ajudava Msuzi nos estudos, fazia de tudo para agradar Jahata. E ela queria me tirar tudo? Marido, casa, herança, e ainda me deixar com má fama?

Mas eu sou uma pessoa que acredita no Bem, pacífica. Continuei a tratá-la com respeito e atenção. Quem sabe acabaria amolecendo aquele coração duro?

E eis que, de repente, comecei a ficar adoentada. Fraca, sem ânimo, trêmula. Não conseguia dormir, tal o mal-estar. Estava parecendo um Písaca, um vampiro das lendas (lendas uma ova! Ele era mais real que eu ou você. E de você, não tenho nem tanta certeza assim): magra, amarelenta, fundas olheiras esverdeadas, cabelo oleoso. Jahata não mexia uma palha para ajudar, mas mexia uma montanha para atrapalhar. Ainda assim, eu continuava a tratar bem minha sogra. Sou uma pessoa boa, acredito na recuperação das almas.

Msuzi me levou ao médico, sob os protestos da mãe, que dizia ser preguiça minha.

E foi no hospital que descobriram o problema.

Kamtedara é uma flor linda, de cujas pétalas esmigalhadas e espremidas saía um veneno mortal se ingerido de uma vez em grande quantidade. Mas, se ingerido aos poucos, matava lentamente.

Eu estava sendo envenenada. Mas por quem? Meu marido e eu nos amávamos, minha sogra era uma mulher sensível e sábia, que tentava me ensinar a ser uma esposa melhor. Não acreditava que nenhum deles fosse um assassino em potencial.

Minha ex-ajudante testemunhou sobre o péssimo tratamento que minha sogra me dava. Meu marido disse que a mãe não tinha motivos para me matar, pois eu a tratava muito bem. Os anciãos da tribo, desconfiados, investigaram. E descobriram restos de pétalas de Kamtedara nos pertences de Jahata.

Eu chorei muito, não podia acreditar, a mãe do meu marido! Impossível, não podia ser... Mas os anciãos, sabendo que minha morte seria lucrativa para Jahata e Msuzi, deram o veredito: Jahata cometera o imperdoável crime de tentar matar uma familiar. Você pode matar por vários motivos, desde que justos, mas, pessoa da família, só em autodefesa, o que não foi, em absoluto, o caso. E o agravante, agravantíssimo, foi o fato de ter sido no lar que a recebera. Isso, então, contrariava todas as tradições, era motivo de escândalo escandaloso. A lei dos lares é sagrada, sacratíssima, em minha cultura.

Jahata perdeu o nome, foi expulsa, nunca mais pisaria na terra dos ancestrais. Seria uma pária, nem o filho poderia ter contato com ela.

E assim termina a minha história.

Disse que era uma pessoa pacífica, que acreditava no Bem, certo? Disse e repito. Mas o Bem precisa de uma ajudinha de vez em quando.

Jahata ia me enlouquecer, me jogar contra meu marido, eu perderia tudo. Sogras têm muito poder na nossa tradição.

Era ela ou eu.

Então me envenenei cuidadosamente, para acabar não morrendo no processo, e deixei as provas incriminadoras com ela.

Foi arriscado? Foi. Temerário? Foi.

Mas pessoas boas e pacatas como eu têm de saber se defender.

(Gosto muito de Msuzi. Espero que ele continue sendo um bom homem)

 

 

 


Comentários

Anônimo disse…
Eita! Nessa a sogra se lascou! Hehehe...
Nadia Coldebella disse…
Ah, eu gosto muito dessas histórias justiceiroa, dessas personagens que só parecem tongas e tiram disso a melhor vantagem.

Adorei essa narrativa em primeira pessoa, essa ambientação rural-tribal. Vc sabe q gosto de descrições bem feitas e as suas estão ótimas, a gente logo se envolve com as imagens qdo lê a história.

O fim dessa sogra horrorosa foi mais q marecido. Mas vc ainda foi uma Killer gentil, eu preferia que esse ser morresse com requintes de sobrenaturalidade.

Essa história mostra que nossa Lady Killer está com a corda toda.

Bjão, querida!
branco disse…
Um conto contado de maneira jocosa, adorei isso. A mistura hindu, africana e peruana, a personagem , cujo nome nós remete a E.R
Burroughs. Gratilady em seu melhor.
Ahhhh...me lembrarei sempre de negar seus pedidos de casamento, se os fizer, no futuro rs
Unknown disse…
Adorei a "surpresa" do final! Muito bom.
Bjs.
Marcio disse…
As sogras ocupam lugar de destaque no anedotário.
Já as noras aparentemente contam com uma assessoria de relações públicas mais eficiente.
Zoraya Cesar disse…
Pessoal, muito obrigada! Esse retorno é tudo de bom!

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