Berenice >> Alfonsina Salomão
Todo ano ela recomeça. Dessa vez, permitiu-se o pequeno luxo de pegar um uber, ao invés de uma combinação de transportes coletivos - metrô, bonde e ônibus - para não correr o risco de chegar atrasada, o lugar ficava um pouco longe. Era primavera mas o céu continuava branco e ainda caía a mesma chuva fina que meses atrás. Berenice vivia a agonia de quem quer ter esperanças mas, por precaução, não tem coragem de esperar o melhor e, por superstição, tem medo de esperar o pior. Entrou no carro decidida a não bater papo com o motorista, não queria se dispersar, mas se decepcionou quando o homem barbudo não puxou conversa. Após alguns minutos de silêncio, começou a falar sobre o único assunto que lhe passou pela cabeça: um cartaz que havia visto mais cedo, pregado por militantes de extrema direita num poste no caminho da escola da filha, onde estava escrito que na França não há lugar para imigrantes. Ele é árabe, vai concordar com minha indignação. O motorista, que na verdade era turco, estava apenas parcialmente de acordo com Berenice. Alguns estrangeiros abusam, eles não se dão conta da vida boa que levam aqui, disse. Ela engoliu a saliva e, sentindo o nó desconfortável que se instalara na garganta algumas horas antes, decidiu fazer o resto do percurso calada. O que vislumbrara como uma troca de banalidades estava a ponto de se tornar uma discussão política do pior tipo, dessas que se têm com pessoas pouco instruídas e cheias de certezas. Enlaçou os dedos sobre as pernas cruzadas e sua aflição aumentou ao perceber que as mãos, normalmente quentes como as do pai, estavam frias e suadas como as da filha.
Desembarcou numa periferia erma de Paris, em frente a um conjunto de prédios tão desprovidos de graça quanto possível. Nada naquele ambiente cinza a confortava. Sorriu para o jovem sentado na guarita da entrada, ele não sorriu de volta. Tentou uma piadinha qualquer, que ficou igualmente sem resposta. O segurança rabiscou quatro números num pedaço de papel e entregou-o à Berenice, murmurando com má vontade a direção a tomar. Ela seguiu debaixo da garoa fria, insegura quanto ao caminho mas incapaz de pedir maiores informações. Estava acostumada a ser paquerada por policiais, porteiros e afins, e achou a atitude do rapaz de mau agouro.
A porta se abriu na primeira vez em que fez o código. Então tinha acertado o prédio. Talvez fosse um sinal, nem tudo estava perdido. Ao entrar avistou, sentada no mesmo lugar do mesmo sofá de couro cinza claro, a mesma garota que no ano passado. Uma moça engraçadinha, os cabelos pretos e lisos presos em um coque displicente, a franja espessa caindo por cima dos óculos de armação grossa. Achou bonito o modo como sua pele clara contrastava com os cabelos, combinava com sua boca rosada e olhos castanhos sem maquiagem. Em outras circunstâncias, poderiam ser amigas. Se cumprimentaram com um certo embaraço. Berenice tentou amenizar o horror de estarem mais uma vez ali, naquele lugar. Me lembro de você ano passado, disse, ainda na sua busca desesperada por leveza. Sim, respondeu a outra, seca. Aqui também, nenhuma interação amistosa, nenhuma espontaneidade possível. Acomodou-se no sofá do outro canto da sala e esperou.
A moça se foi, duas outras chegaram. Essas, Berenice nunca tinha visto. A primeira era loira. Seus cabelos longos e fartos estavam escovados e jogados para o lado com falsa displicência. Trajava um vestido justo na altura dos joelhos, saltos altos e meia-calça, tudo preto. Berenice se indagou se não deveria ter vestido uma saia também, pensamento que rejeitou rapidamente. Seria muito feminino. Já tinha a voz aguda e o sotaque brasileiro, não precisava de nenhum acréscimo de sensualidade. Estava bem com a calça social larga e o tricô moderno sem forma, escolhidos a dedo para fazê-la parecer correta, mas sem extravagâncias, charmosa sem ultrapassar os limites, alheia às superficialidades da moda e sem nenhum traço hippie.
Ano passado pecara ao usar uma camisa bem cortada, estilosa demais para aquelas pessoas. Pior, como se dera conta depois, suas listas vermelho alaranjadas eram da cor exata de Iansã. Poucos dias antes, uma senhora francesa apaixonada pelo Brasil lhe dissera que estava torcendo por ela e que acenderia uma vela para seu orixá, Iansã. Comovida pela gentileza, Berenice agradeceu e não pensou mais nisso. Foi o seu erro. Quando se viu atacada pelo homem de traços mediterrâneos, indignou-se face à injustiça dos comentários e se defendeu com unhas e dentes, colocando tudo a perder. Agiu em típica filha de Iansã. Culpa da vela, culpa da camisa! Não soubera abaixar a cabeça, engolir os sapos, aquiescer com humildade. Embora não houvesse levantado a voz, nem pronunciado nenhuma palavra ou expressão mal-educada, expressara seu ponto de vista, tirando a razão do bigodudo perante os outros. Pecado mortal. Esse ano não cairia na mesma armadilha. Estava pronta para parecer ao mesmo confiante e submissa. Nem por um segundo perderia de vista sua frágil posição naquela hierarquia social caquética.
A outra moça que chegou tinha por volta de quarenta anos. As grandes rugas cavadas no rosto moreno, o cabelo preso num rabo de cavalo desleixado, a ausência de qualquer maquiagem, a magreza e os ombros ligeiramente caídos para a frente davam-na uma aparência afadigada. Ela deveria ter feito um esforço, passado ao menos um batonzinho. Ou não? Talvez fosse isso o que quisessem, mulheres isentas de vaidade. É necessário ser burra para ser inteligente, não era assim que muitos pensavam? Mais uma vez, o silêncio mostrou-se penoso para Berenice. Como fingir que aquela era uma situação banal? Como negar a posição sui generis das três mulheres naquela sala impessoal, mobiliada apenas por dois sofás, uma mesa baixa e uma maquina de café? O anonimato era uma impossibilidade para ela, uma vez que, se as três estavam ali reunidas, não eram de fato anônimas. Dentre todas as pessoas no planeta, justamente elas compartilhavam aqueles minutos de aflição naqueles poucos metros quadrados. Perguntou para qual horário haviam sido convocadas. 14h30. Como ela. Como era curioso, três pessoas convocadas ao mesmo tempo. Suspirou.
Lançou uma conversinha amistosa. Descobriu que a mais velha estava ali pela quinta vez e era mãe de três crianças. Não era à toa que parecia cansada. Ela tirou da bolsa três pacotes de balas e mostrou-os à Berenice: comprara-os para os filhos e esquecera de entregá-los. Berenice sorriu. Ela também sempre tinha algo que pertencia aos filhos na bolsa: uma peça de lego, um Playmobil sem cabeça, um batonzinho sabor morango. Gostava desses pequenos resquícios, eles a lembravam que a vida vai além daquilo, ajudavam a relativizar os fracassos. O importante era que os filhos estivessem com saúde. A frase clichê que ouvira tantas vezes com desprezo se tornara pérola de sabedoria. Sim, os filhos estão bem e com saúde, e é isso que importa. E vocês podem todos ir à merda. Não, não era hora de invocar Iansã. E espero que vocês também estejam bem e com saúde. Assim estava melhor. Educada e com um sorriso leve, sem exageros, para não parecer idiota ou, pior, histérica. A loira era italiana, não tinha filhos, estava ali pela primeira vez. Isso explicava a elegância, o porte altivo, o desdém pela conversa das outras. Mas também denunciava uma certa ingenuidade, a segurança típica daqueles que ainda não tentaram. Assim também não vai funcionar.
Uma mulher apareceu e, sem se dar ao trabalho de se apresentar, ou ao menos cumprimentá-las, chamou o candidato das 14h30. As três se entreolharam, confusas, e explicaram que todas haviam recebido uma convocação para as 14h30. Irritada, a mulher perguntou seus sobrenomes. Berenice começou a dizer o seu, composto por três nomes, o que é natural no Brasil e estranhíssimo na França. Foi cortada na metade. As colegas disseram os seus. Sem perda de tempo, a mulher indicou à morena que a seguisse. Sua escolha não fazia sentido, pois não respeitava a ordem alfabética. Berenice não conseguia pensar em nenhum outro critério plausível. Não se demorou nesse pensamento, era apenas mais uma das aleatoriedades daquele universo.
A loira foi convocada uns quarenta minutos depois. Os próximos minutos que Berenice passou sozinha naquela sala pareceram intermináveis. Foi ao banheiro umas cinco vezes, retocou o batom, ajeitou os cabelos, fez exercícios de respiração e até arriscou umas posturas de equilíbrio que aprendera na aula de yoga - não sem antes se certificar, claro, de que ninguém estava olhando. Quando por fim chegou sua vez, um senhor de meia idade, timidamente simpático, informou-a que tudo acontecia no subsolo. Atravessaram uma porta pesada e começaram a descer as escadas, frias e escuras como são as escadas cujo uso é secundário em relação ao elevador. Melhor assim, seria apavorante vivenciar a proximidade de um elevador naquela hora. Indo contra todas as decisões tomadas anteriormente, surpreendeu a si mesma e exclamou em alto em bom tom: é a descida aos infernos!
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