UMA ESTALAGEM DIFERENTE - parte 1 >> Zoraya Cesar



A estalagem estava lotada. O que não era grande coisa, visto ser pequena, uma dezena de quartos, um pouco mais, um pouco menos, nem o estalajadeiro sabia dizer ao certo. Até porque, quartos ocupados ou não, hóspedes e transeuntes ficavam a maior parte do tempo no bar.

O bar 

Era largo, encavado numa rocha, abaixo da estalagem. Tinha um grande balcão sem cadeiras, no qual as pessoas se aglomeravam para pedir uma bebida, algo para comer, ou simplesmente conversar. A luz era suficiente para enxergar, mas, nem sempre, distinguir fisionomias. De qualquer modo, cada um cuidava de sua vida. E era bom que assim o fosse. Pois havia de tudo frequentando aquele bar. 


Viajantes costumam se
alimentar bem quando
têm a oportunidade.
Nunca sabem
quando será
a próxima refeição.

No salão, não muito grande, umas 15 mesas, pequenas, geralmente repletas de bandejas com toucinhos, pães, manteiga, grossos bifes engordurados, feijões, ovos, cereais e diversos copos de cerveja. Cerveja e outros líquidos, alguns roxos, outros gosmentos, um ou outro fumacento. A teoria de Newton, segundo a qual dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, era um tanto desvirtuada ali. Ao redor das mesas, onde caberiam dois ou três corpos apenas, apinhavam-se seis, às vezes sete, espremidos, acotovelados. Perdigotos saindo de uma boca a outra sem pudores ou reclamações. 

De vez em quando um cotovelo batia mais forte no rim de um, no nariz de outro, mas, assim que a altercação ameaçava sair do controle, o estalajadeiro chegava e batia estrondosamente com um enorme martelo no meio da mesa, atingindo o que estivesse por ali - prato, copo ou dedos. Silêncio (com eventuais gemidos sussurrados e temerosos). Segundos depois, a balbúrdia recomeçava, sem brigas nem ressentimentos. 

O estalajadeiro

O homem também era o barman, garçom, segurança, tudo embutido num corpanzil de músculos e banhas, forte como o cavalo de oitos patas de Odin. Não brincava com ninguém. Ninguém tirava onda com ele. Os poucos que o fizeram ou não viveram para contar a história (sei, sei, tremendo chavão, mas fazer o quê? É verdadeiro!). 

Sabia mais da vida, das histórias e do passado de cada um dos frequentadores que eles mesmos. Mas nenhuma palavra jamais saiu de sua boca, era um repositório de segredos mais confiável que um túmulo.  Sua vida daria um conto (que um dia conto. Em breve). 

Frequentadores

Se havia as mesas tumultuadas, havia também as, digamos, mais bem comportadas. Geralmente ocupadas por profissionais mais antigos e mais perigosos. Havia de tudo. Exorcistas, caçadores, feiticeiras, bruxos, guerreiros, sereias, contrabandistas de rituais e artefatos mágicos, fadas, anjos, guardiões. De todos os sexos, mocinhos e nem tão mocinhos, bandidos deslavados e justiceiros implacáveis. 

Nem todos se conheciam; alguns eram inimigos figadais. Estavam ali para descansar, fugir, comprar informações, o que fosse. Ali, naquela estalagem, naquele ponto do espaço-tempo, não havia querelas nem provocações. Primeiro, porque fazia parte das regras – a estalagem e o bar eram zona neutra, por consenso histórico. Depois, porque ninguém, nem mesmo aquelas criaturas perigosas, teria coragem de desafiar o estalajadeiro. Brigas eram ruins para o negócio, e ele tinha uma reputação a zelar.

Havia também os contadores de histórias. De bravatas. De lendas. De mentiras e verdades. 

Eram, no geral, caixeiros-viajantes, homens e mulheres que comerciavam produtos diversos - nem todos legais ou permitidos. Apesar da profissão pouco glamurosa, na verdade eram sobreviventes dos mais hábeis, sabiam se defender e escapar rapidamente de situações perigosas. Conheciam lugares por quais poucos ousariam passar e seres que poucos ousariam encontrar. Viam, ouviam e sabiam de muita coisa. 
E o que não sabiam, inventavam um pouco, para dar cor à história e, quem sabe, ganhar uma bebida de um ouvinte um pouco mais generoso. Eram uma fonte preciosa de divertimento e informações. 

Yatri era um desses caixeiros. Tinha a expressão sofrida de quem já estava cansado demais, e era chegado a uma bebida. O pessoal não dava muito crédito a suas histórias, por vezes mirabolantes demais, bêbadas demais. Mas era uma lenda entre os de sua profissão e isso, por si só, já garantia respeito. E de vez em quando alguém lhe pagava uma bebida.  

O homem das vestes marrons 

Um homem chamou Yatri à sua mesa. Vestia uma bata, uma batina, marrom de mangas compridas. Tinha as feições dos que têm 
Depois de várias cervejas
de lúpulo marinho, 
o caixeiro-viajante
começou a contar uma história

menos anos pela frente do que os que ficaram para trás, mas não era, em absoluto, frágil. Emanava uma tal aura de poder e força que era quase palpável – uma aura de doçura, no entanto. 

Era o único com quem o estalajadeiro se sentava para conversar ou jogar. Ninguém mais o conhecia e, se a curiosidade matou o gato, problema dele. Nenhum frequentador sofria desse mal. 

Ofereceu a Yatri cerveja de lúpulo marinho e começaram a conversar sobre amenidades. A princípio, o caixeiro contou causos que ouvira falar, mas sob o efeito da bebida e o olhar amistoso, quase hipnótico do homem de vestes marrons, foi ficando mais à vontade. Então, baixando a voz, começou a contar uma história ocorrida com ele, uma aventura da qual escapara por muito pouco. 


Continua dia 17 de fevereiro

Comentários

Marcio disse…
Puxa vida, agora eu fiquei curioso sobre essa história que só vai começar a ser descrita no próximo capítulo...
Mas, desde a leitura do título, estou com a forte impressão de que algum personagem vai morrer até que a Zoraya termine seu texto.
branco disse…
o cenário e as pessoas me fizeram lembrar as estalagens renascentistas, mas pouco a pouco foi aparecendo o estilo, o seu estilo, e isso é ótimo. aguardemos!
Anônimo disse…
Espero que não vire novela com silhões de capítulos! Por enquanto só "apresentações".
Nadia Coldebella disse…
Zozinha querida, vamos por parte, como o Jack.

Eu gostei muito das descrições do lugar dos personagens, dos frequentadores do lugar. É um cenário muito interessante e me faz ter grandes expectativas (de mortes, assassinatos justiceiros, algum encantamento macabro...).

Já estou aqui, aguardando a parte dois, que, imagino, será a história que Yatri contará ao homem misterioso.

Isso me leva a desejar a parte três, a do plot twist, aquela em que as intenções se revelam e as máscaras caem.

Confesso que não me importo de uma expectativa em três partes...Deixa essa Lady Killer sádica fluir para o nosso deleite!

(Seu leitor cativo vai entender a tortura e saberá apreciar, ávido, a recompensa da espera!)

Bjinho!
Albir disse…
Pelo jeito acabaram-se as minhas férias. Essa cenário promete. O meu sangue já dispara nas veias. Minha respiração fica irregular. Serei hóspede do medo na sua estalagem. É a minha sina.
Anônimo disse…
Quero uma garrafa dessa cerveja de lúpulo marinho. E o lúpulo marinho? Encontra-se onde? Em que mar? Há dele nos Mares do Sul? Seria uma baita emoção fabricar essa cerveja no meu laboratório. André Ferrer aqui.
Ana Raja disse…
Gostei da descrição dos cenários e a apresentação dos personagens. Curiosa para a chegada da segunda parte!
Zoraya Cesar disse…
Pessoal, mil obrigadas pelos comentários sempre gentis!

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