REPETIDA E REPETIDA >>> Nádia Coldebella



- Pra morrer, basta estar vivo - ela disse, imersa no seu crochê.

Pensar na morte aos oitenta anos era um exercício forçado que logo virou um hábito. A agulha e a linha na mão também forçavam um outro velho hábito, o de falar sozinha.

- A morte é engraçada. -  continuou para si mesma, tentando fazer a linha passar pelo ponto - Todo mundo morre, mas ninguém quer seguir esse caminho.


Um, dois, três pontos e o trilho de mesa começava a tomar forma.


- Eu já não enxergo do mesmo jeito. - Ela já não via o que errava e achou que talvez pudesse ver alguma coisa na hora da morte. 

A filha suspirou.

A velha levantou os olhos do crochê e viu que a filha a olhava de forma estranha. 


- Eu casei pra sempre, menina - agora disse para filha - mas quando ele morreu, eu só pensava no que ele tinha me feito.


A mãe desmanchou um ponto do crochê. A filha abriu a boca pra falar alguma coisa, mas logo fechou. Pode quase ver uma sombra da culpa descer na lágrima do olho opaco da mãe. Mas não viu o que se passava no seu coração.


- A vida vai e volta, repetida e repetida - disse a velha, repentinamente entendendo a cara nova de tudo o que já viveu.


Ela pensava em si, também, porque agora era uma senhora idosa e viúva.


- Eu já era viúva antes.


Seus lábios curvaram-se num sorriso murcho e amargo.

- Sabe que casei com seu pai porque ele precisava de alguém pra ajudar a mãe dele?

Foi o que disse para a filha que suspirou novamente, sabendo que essa frase tinha se juntado a outras tantas, mais infelizes ainda, ditas pelo velho e morto pai. Eram as armas que ele dera a mulher para matá-lo também dentro de si.


A velha forçou a agulha para puxar o ponto, puxando também outras centenas de mágoas que havia guardado em seu livro de memórias, costurado, durante anos a fio, com a linha mais grosseira .


Respirou fundo. A morte era mesmo engraçada. Nela, encontraria algum alívio. Talvez quando chegar minha vez, eu descubra quanto perdi nessa vida - agora pensava. 


- Eu gosto do descanso que ganhei - disse, olhando serenamente para a filha. - E preciso primeiro acabar esse trilho de mesa - ela contemplou, quase orgulhosa, o trabalho delicado. Depois desmanchou tudo o que havia feito naquele dia e deixou o crochê de lado.


A morte, essa quase-conhecida, poderia esperar mais um pouco.

Comentários

sergio geia disse…
Belo conto, Nádia. Sabe que gosto de contos que tratam dessas coisas tão humanas? Aos 80, não deve ser fácil lidar com a morte; ela está tão próxima. Ou não, né? Quem vai dizer que não pode haver vida mais uns 10 anos? E a mágoa que ela traz no coração é tão comum, a gente vê tantas por aí. Muita sensibilidade sua em captar esses sentimentos.
Albir disse…
Que beleza, Nádia! Lindo e delicado como um trabalho de creche!
Zoraya Cesar disse…
"A velha forçou a agulha para puxar o ponto, puxando também outras centenas de mágoas que havia guardado em seu livro de memórias, costurado, durante anos a fio, com a linha mais grosseira."
Amei profundamente isso. Só mesmo uma Condessa para escrever desse jeito.
Condordo com o Sergio, deve ser assustador chegar aos 80. Se bem q depois dos 40 a gente já percebe a presença da Velha Senhora.
Q texto lindo, Nádia.
Vem cá, desdobra isso. Conta a história dela. Revela q ela matou o marido...
Nadia Coldebella disse…
Obrigada a todos pelos comentários. Não me de ideias, dona Zoraya...

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