EU E O ROBÔ >> André Ferrer

Eu, robô (2004), filme baseado nos contos de Isaac Asimov
Usei uma inteligência artificial, escrevi (com ela) um conto e salvei a minha inteligência emocional. Recomendo que todo escritor faça o mesmo. Será libertador. 

A tecnologia, que já foi ostensivamente debatida no caso das artes plásticas, ganhou a sua versão para textos e, há mais ou menos seis meses, começa (apenas começa) a aterrorizar quem trabalha seriamente com a produção de textos. No meu caso, creio que agi a tempo. Estou feliz. Duplamente porque o conto engendrado no processo acabou rejeitado numa seleção editorial, o que caracteriza, nessa minha experiência, a cereja do bolo. 

O processo foi o seguinte: num primeiro momento, eu empreguei o algoritmo para produzir dois fragmentos. Depois, eu retrabalhei esses dois trechos até obter uma unidade narrativa. Os primeiros resultados (os textos brutos) são sempre indignos de qualquer crédito (pelo menos para mim), mas podem ser encarados (por qualquer escritor bem intencionado) como pontos de partida (aqueles pontos de partida que qualquer cérebro humano pode produzir satisfatoriamente). 

Munido de coragem (sob as bênçãos de Asimov), mergulhei nessa verdadeira catarse. Estou livre. Posso, agora, voltar ao meu prazer claudicante e cheio de impurezas (que os humanos normais e iniciados no bom e velho código escrito reconhecem como demasiado humano). 

Mas... Como funciona essa tal de inteligência artificial que escreve? Sem esgotar o assunto (e, de fato, sem a menor vontade de fazê-lo), a traquitana funciona na base de estímulos (para mim, quanto mais simples melhor) e produz textos bastante assépticos. E o que mais esperar? Ora, a coisa não passa de um mico de realejo. É uma espécie de Word que joga tarô com o material oferecido pelo consulente. Uma porcaria, em suma, ao redor da qual se constrói uma comoção enorme a cada dia. Daí a importância de o escritor, na sua intimidade, tomar logo contato com a estrovenga e se livrar, de uma vez por todas, da influência de toda e qualquer nocividade originada no hype; livrar-se, é claro, de toda a inação a que, possivelmente, essa conversa fiada levará os mais incautos. 

Sim. O ChatGPT é um robô que escreve. Ele foi criado pela empresa OpenAI, que até já se comprometeu a oferecer um antídoto para o veneno criado. Tudo porque o robô escritor (por razões óbvias) causa celeuma no meio acadêmico. 

Diante dos questionamentos vindos de inúmeros educadores e instituições de ensino, a OpenAI prontificou-se a desenvolver e aperfeiçoar um algoritmo capaz de identificar textos criados pela própria inteligência artificial (para que ninguém, ao contrário do que aconteceu comigo, seja selecionado impunemente). Um programa que já foi disponibilizado, mas que ainda apresenta grandes limitações. Em línguas diferentes do Inglês, o remendo ainda sai muito pior do que o soneto. 

Principalmente nos EUA, algumas instituições já proibiram o uso do ChatGPT pelos seus alunos. Na esteira do que ocorre a respeito das inteligências artificiais criadoras de imagens, a temperatura das comunidades ligadas à produção textual tende a aumentar em relação ao robô escritor. Artistas e jornalistas, nas mesas de podcast, discutirão o tema até a exaustão. A honestidade intelectual, é claro, como o norte das conversas. 

O mundo digital amplia suscetibilidades em quem é sensível. Escritores são sensíveis e continuarão sendo sensíveis (quero crer). Portanto, a fim de prosseguir com o seu próprio tarozinho e, de preferência, ao largo de dores de cabeça desnecessárias, eu recomendo um único e súbito encontro com essa máquina. Toda a discussão (toda a aporrinhação) perderá o impacto sobre aquele que experimentar o brinquedo de uma vez. Lembre-se: a desmistificação é libertadora.

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Que texto sensacional e muito útil, André! Concordo em gênero, número e degrau (saberá o robô usar essa piadinha de tiozão)?

Fiz a experiência com o monstrinho, e vc definiu bem: escrita asséptica. Não tem nada, não tem o olho, nem a mão, nem a alma do escritor.

Quando a gente escreve, deixa uma marca, um pedacinho da gente. Cada forma de colocar uma palavra é uma impressão digital escrita, cada frase é parte da cadeia de DNA textual, formando sentidos que são muito pessoais, cheios de intenção e desejos.

Então, essa estrovenga (amei essa palavra) pode até me imitar, mas não terá nada de mim, de nenhum de nós. É uma escrita estéril.

Mas não posso deixar de pensar que tecnologias como essa lançam grandes pontos de interrogação sobre o sistema educativo atual. Não tem alma, mas traz perguntas...

Gde abç, queridão!
ze disse…
Certíssimo! Talvez, algum dia a IA terá também as várias formas de sentimentos.
Albir disse…
Que interessante, André!
Acredito em vocês pra não precisar experimentar. Mas que venham as discussões.o
Zoraya Cesar disse…
Questionamentos e posições interessantes do André, como sempre. Eu tenho medo disso. Já vi textos dele, e, como disseram acima. desalmado. O problema é: quem se importa? Essa IA acaba com o problema de quem nao gosta de pensar ou diz nao ter tempo para escrever. Individualidade, criatividade, diversidade, tudo isso está perdendo espaço para a pasteurização universal.

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