PINTADO NA BRASA NO VILLA VELHA-POTENZA >> Sergio Geia

 


Sentei-me à mesa e logo o garçom trouxe o couvert. Patés de ricota e de aliche. Pães e torradas. Azeitonas pretas carnudas. João foi de Coca-Cola, gelo e limão, afinal, era o motorista da vez. A mim, uma taça de vinho era a sugestão do tempo, céu cinza, frio; não resisti. 
 
Era o restaurante indicado por um amigo, Lucas Tardelli, havia tempo, tradicionalíssimo em São José dos Campos, o Villa Velha. Já tive inúmeras oportunidades de conhecê-lo, mas, por um problema ou outro, sempre adiava. Não adio mais. Logo, esse amigo chegaria e juntos brindaríamos a vida e poderíamos comprovar o que ele me relatara sobre a especialidade da casa: o famoso pintado na brasa. 
 
Era difícil não fazer o link, aguçado pela memória olfativa, afinal, o restaurante tinha o mesmo perfume: o grupo de amigos a dizer bobagens, rindo como crianças puras, o vinho branco no gelo, as cervejas, as azeitonas. 
 
No início, éramos juvenis num ambiente quase hostil da Cantina Potenza em Taubaté, ao qual estávamos desacostumados. Etiqueta passava ao largo, não tínhamos a menor noção de posturas, ríamos alto. A comida pedida sem zelo chegava aos borbotões, estrogonofe, filé à parmegiana, filé arabela, facilmente comiam vinte quando éramos apenas seis ou oito. 
 
Com o tempo ganhamos cancha, namoradas, e juntos aprendemos a apreciar o restaurante, que era agradável e sofisticado. Descobrimos então que o biscoito fino era o peixe carnudo de pele laranja assado na brasa, que vinha em grandes postas num espeto, um perfume que rescendia o salão, e que quando no prato, levava uma colher de molho antes de beijar a língua. 
 
Eu bebia o vinho, vez em quando passava o creme no pão para degustar, avançava sobre as azeitonas, e as lembranças vinham aos poucos, num conta-gotas de saudades. Nos interlúdios das viagens que a memória fazia, conversava com João sobre amenidades, ríamos com discrição, dali a pouco chegaria Lucas. 
 
Certa vez encontramos um padre que assumiria a igreja. Nós na nossa mesa, ainda desconhecidos daquele homem de sobrancelhas grossas e expressão sisuda. Explico. Naquela época éramos jovens e formávamos um grupo que atuava na igreja, que cantava nas missas, que se reunia no salão paroquial. Com a morte do pároco, nosso amigo e um entusiasta do grupo, o bispo nomeara um novo sacerdote, aquele homem que agora jantava com um casal amigo. Ao terminar nosso jantar, munidos de uma enorme cara de pau, fomos todos em bando à sua mesa nos apresentar; ele até engasgou de susto, e com o arroz. 
 
Com Lucas já à mesa, eu na segunda taça de vinho, avistei a estrela principal. As postas de peixe vinham presas num grande espeto e tinham a pele dourada de sol, tal qual minhas lembranças. Acompanhavam o arroz à grega e o molho tártaro. Quando levei a primeira garfada à boca, uma porção de arroz, peixe e molho tártaro, tive a impressão sublime de estar entrando numa máquina do tempo. 
 
A Cantina Potenza fechou há anos, mas, por sorte, pelo menos para a minha sorte, o Villa Velha está aí. 
 
Mais que atiçar saudosismos inúteis, viver é uma permanente construção de memórias fruto de uma sequência de encontros inéditos com o mundo (1). Quanto mais vida, mais memórias a linkar. Era uma memória sendo construída naquele instante, uma sexta-feira de céu branco e frio que, nem sei bem por que, me fez lembrar de um show do Oasis em Manchester. Eu não tinha pressa, aliás, tinha todo o tempo do mundo. 
 
 
• P.S.: 1. “A vida é uma sequência de encontros inéditos com o mundo. Portanto, ela não se deixa traduzir em fórmulas de nenhuma espécie (Professor Clóvis de Barros Filho – filósofo e professor de ética da Faculdade de Comunicação e Artes da USP); 2. Ilustração: Pixabay; 3. Fotos: arquivo pessoal do autor.
 
 
 



 

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Que disparate! Minhas papilas gustativas estão reclamando aqui por causa dessas fotos!

Falando sério, é interessante ver como vc cita os diversos perfumes do ambiente: o cheiro é um ótimo eliciador de memórias. E as suas deveriam ser eliciadas todo o tempo, pois rendem boas crônicas.

Essa, em especial, criou, em mim, imagens semelhante a flashs de memória, iguais dos filmes, de cenas que corriam em câmera lenta que, quando terminavam, deixavam um rastro suave de saudade...

Gde abraço!
sergio geia disse…
Nádia, delícia de comentário. Os cheiros vão lá no fundo da memória buscar coisas perdidas, geralmente as boas rsrs
Albir disse…
Sim, deu fome de peixe e de lembranças, de amigos e de juventude.
Zoraya Cesar disse…
o olfato é um sentido subestimado. Pois nossa memória olfativa é ainda mais poderosa que a visual. Vc se engana com um rosto, nunca com um cheiro. E a sua crônica tem o perfume das delicadezas sensíveis.
sergio geia disse…
Albir, meu amigo, temos muitas fomes. Algumas saciáveis, outras, infindáveis. Zô, minha querida, esse tal olfato é poderoso.

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