CLARISSA >>> Rogers Silva

 


Por que papai vai trabaiá todo os dia?, e perguntei pra mamãe e ela disse que senão eu não comia nem tinha como estudá nem nada. E nem presente, eu lembro que ela completou e eu pensei Mas que presentes? Só pensei. Não falei nada pra mamãe porque ela era meio braba. Eu era menino e menino apanha facin. Xispa. Papai era bonzinho. Todos os dia ele chegava umas sete horas da noite, me dava um beijo no rosto que eu logo limpava a baba, me colocava no colo e dizia que no Natal eu ia ganhá do Papai Noel um presentão. E eu ficava feliz imaginando que depois de dormir e acordá eu ia pra árvre de Natal (esse ano tinha que tê árvre de Natal. Em todas casas tinha. Até naquelas da televisão!) – eu ia pra árvre e lá ia tê uma caixa bem bonitinha e tudo, com um lação desse tamanhão, ó, e ia abrir e ia tê uma bicicleta e um videogame e um monte de fitas. Depois ia, voltava pro meu quarto e de debaixo da cama ia tê mais presentes: um monte de caixinhas e outras grandes assim, ó. Mas ainda não era Natal. Até lá... 
 
Eu tinha uma amiga que era muito esperta e se chamava Clarissa. Ela tinha a mesma idade que eu mas era mais inteligente. Ela dizia umas coisa estranha tipo que a água da chuva saía das nuvens e na lua era tudo escuro e o sol que era clarinho, clarinho e quente. Eu dizia algumas coisas também, mas tudo que eu ouvia dos professor, tipo Pedro Álvares Cabral e células e outras coisas mais sobre o Brasil. E ela dizia Mas isso todo mundo sabe e eu dizia Que mentira! e saía chateado porque ela era mais conhecedora do que eu. Um dia ela, branquinha, coitada, com aqueles cabelos pretinhos e grandes, disse que o vô dela era forte que carregava um cimentão assim, ó, bem pesado, com um só dedo. Eu disse Meu avô é mais e carrega um Escort com uma mão só. Ela disse Mentira porque seu vô já morreu. Eu fiquei chateado e disse Ih, você é bobona bobona bobona e fui sentar de debaixo da árvre que a gente sempre falava que ia fazê uma casinha e nunca fizemo. Ela veio toda boazinha e pediu desculpas e falou que quando os avôs morre, eles vai prum lugar que nem a casinha que nós queria fazer, lá, ó, bem calmo, só que bem maior. De repente deu um barulho forte do trovão e ela disse Sabia que os relâmpos vêm antes dos trovão só que eles é o mesmo? Não entendi. Mas ri daquele jeito meu assim que nem um indinho, como todo mundo falava. Ela riu também e eu senti uma coisa estranha e ruim aqui dentro, ó, e depois à noite na minha cama eu até chorei. Chorei até. 
 
Nós passava o dia inteiro juntados, eu e a Clarissa. A mãe dela era legal e dizia que eu era o índio mais bonito do mundo, inclusive aqueles lá de lonjão. Dizia que ia namorá com a Clarissa, mas eu dizia Sai fora. Eu nem vou namorá. Clarissa sorria com aquele jeito dela igual da mãe. As duas tinha uns olhos meio claros. A mãe da Clarissa também era muito bonita. Na escola ela era mais adiantada uma série do que eu, mas no recreio a gente ficava sempre juntado. O povo lá dizia que a gente namorava e eu ficava brabo. Eu nem vou namorá, dizia sem graça quando não ficava com raiva. Ela ria. 
 
Depois de outubro vem novembro, depois dezembro e depois o Natal, ela disse. A gente tava em frente da represa que minha mãe não gostava que eu ia. Mas eu não entrava, eu era medroso, a Clarissa mesmo que falava. Ela entrava, mas só um pouquinho, e nadava. Ela me chamava e dizia pra mim entrar. Tô sem vontade. Cê tá é com medo. Tô nada! Medroso, medroso, medroso, e jogava água em mim. Eu corria brabo, voltava pra olhar pra ela e ela ria. Perdia com isso minha brabeza. Por que ela sempre ria? 
 
Um dia à noite, a gente brincando de pique-esconde com outros meninos perto de casa, aconteceu uma coisa estranha. O Felipinho que tava contando: Um! Dois! Clarissa me pegou o braço e fomos correno prum pradão, aqueles de luz, bem longe do lugar que o Felipinho tava contando. O Xandão e o Dedé subiu em cima da casa do Dedé. E a Vanessa e a Paulinha entrou na casa da Vanessa que era irmã do Felipinho. Quarenta e nove! Cinquenta! Pronto! Eu sentia a respiração da Clarissa, távamo muito perto, o pradão era pequeno e apertado e tava até meio escuro lá dentro. Eu ia falá alguma coisa mas ela disse shhhiii e colocou o dedo na minha boca. Távamo pertinho um do outro e ela foi assim chegano, chegano e pegou na minha mão. Eu tremi e senti uma coisa assim estranha. Credo. Aí então ela me deu um beijo na boca assim tão rápido e aí o Felipinho apareceu e gritou Clarissa e Hugo! Peguei! A Clarissa correu bem depressa mas eu fiquei paradinho dentro do pradão sentino aquele gosto estranho além do friozinho. À noite, na cama, eu pensava que Clarissa era minha namorada e beijava o travesseiro e sentia uma coisa boa mas estranha. E chorava. Mas não chorava assim de dor ruim. Era bom. 
 
Chegando perto do Natal, a gente tava brincano de naviozinho porque tinha chovido e ficou meio alagado, a gente pegou e brincava de pirata e tudo. Eu disse que ia ganhá um monte de presentão do Papai Noel esse ano, inclusive um videogame e que tudo ia tá na árvre de Natal de manhãzinha, viu. E ela riu. Disse que Papai Noel ia só pras crianças lá dos Estados Unidos e Europa e de lá bem longe, aquelas crianças boazinhas. Eu disse Mentira. Ele já foi lá em casa e me deu um caminhãozinho ano passado, menti. Eu nunca tinha visto o Papai Noel. À noite, távamo deitados assim no chão e olhando pro céu. Seus olhos parecia brilhar que nem uma lanterna esverdeada do Dedé. Ela disse As estrelas mudam de lugar. Elas andam. Eu ri. Ih, ó. Cê tá doida?, falei. Falamo de um montão de coisa mas principalmente do Natal que tava chegano. 
 
Dezembro chegou e as casas ficaram bonita cheia de luzinhas coloridas e todas enfeitada, inclusive a minha que nunca tinha sido antes. Mamãe até colocou uma árvre na sala mas não tão bonita quanto aquelas da televisão. Eu ia perguntá, mas mamãe era meio braba. A festa mesmo, aquela que todo Natal tem, foi na casa da Vanessa e Felipinho. Os pais deles eram altões e brancos. Diziam que eram gaúchos, mas eu num sabia o quê que era isso. A Clarissa de vestidinho verde-claro e a mãe também tavam, e outras pessoas mais. Minha mãe tava até mais feliz nesse dia e menos braba. Conversava muito com a mãe da Clarissa. Dessa vez ficamo eu, a Clarissa, a Vanessa, o Felipinho, o Dedé, o Xandão e outros meninos que eu não conhecia juntados, todos. Todas as crianças ganhou um presentinho, uma caixa de bombom, do Sr. Ricardo, pai do Xandão. Foi bom até esse dia. Mas eu queria mesmo era chegar em casa, dormir e acordá e vê aquele tantão de presente na árvre lá de casa, de debaixo da cama que Papai Noel ia deixá. Fomo pra casa e eu já tava com sono e cansado e deitei e dormi sem vê. Nem vi. Sonhei com eu e com a Clarissa na nossa casinha da árvre que a gente num tinha feito. 
 
Acordei e fui correno pra árvre de Natal, nem escovi os dentes nem nada, fui é pra árvre de Natal pra vê se Papai Noel tinha passado lá em casa e deixado presentes pra mim. Tinha uma caixona grandona assim, ó, bem grande mesmo e eu tava muito feliz porque era a primeira vez que eu tinha ganhado presente no Natal e era grande. Abri correno correno e quando abri vi que era uma bicicleta. Eu fiquei feliz e fui correno pro quarto do papai e da mamãe falá pra eles que Papai Noel tinha me dado um presentão que eu queria há muito tempo. Eles riam, riam, felizes. Até mamãe. Perguntei pra mamãe se eu podia andá com a bicicleta. Ela disse que à tarde sim, agora não. Eu nem importei. À tarde eu ia com a minha bicicleta que eu tinha ganhado do Papai Noel pra casa da Clarissa e falá pra ela que Papai Noel passa nas nossa casa sim, e não só do povo lá de lá. 
 
À tarde eu peguei minha bicicleta novinha-novinha e fui pra casa da Clarissa que ficava um pouco perto, mas nem tanto, da minha. Chegando lá eu vi algumas pessoas lá fora no jardim, estranhas. Passei, como Ayrton Senna, por entre assim, vrummmm, no meio das pessoas, até chegar na porta. Sua mãe tava vermelha-vermelha e o olho também e ela gritava e chorava e uma outra abraçava ela muito. Eu não entendi nada. E nem vi Clarissa. A mãe da Clarissa não me viu porque saí assim pouquinho depois e perguntei lá fora pro Xandão que era um pouco mais velho e conhecedor que eu e entendia mais as coisas, o que tava aconteceno. Ele disse que a Clarissa pegou um naviozão assim, ó, que tinha ganhado da mãe e foi pra represa sozinha, sem falar com a mãe. Ih, ela é doida, ri. E parece que ela afogou, continuou Xandão. Ih, mentira!, gritei e pedalei bem forte minha bicicleta rumo à minha casa. Tinha chovido, parece, à noite, por isso um ventozinho meio frio batia em meu rosto. Eu corria muito e brequei forte quando cheguei em casa e quase caí, chorando. 
 
Perguntei pro papai depois, noutro dia, o que tinha acontecido e ele disse que Papai Noel tinha levado Clarissa. E eu ficava feliz porque assim ela não ia mais, nunca mais duvidar do Papai Noel porque tava com ele, pertinho, e ficava triste porque eu sentia uma coisa ruim aqui assim, ó, uma vontade de ver ela e aquele sorrizinho e queria ouvir aquelas estranhices que ela falava, mas não podia. Eu nunca mais ia vê Clarissa? Ah, nem! Nem aquele sorriso, assim, ó? Nem!... 
 
 
 
Da obra Quando tudo era ruína, amor, disponível na Amazon e no Google Play. Rogers Silva é escritor. Profissionalmente, trabalha com leitura crítica e revisão de textos. Mineiro, nasceu e mora em Uberlândia. Publicou diversos contos em sites, revistas, jornais e coletâneas. É cofundador da Revista O Bule. Autor do livro Manicômio (narrativas ficcionais), dos e-books Sobre seres que bradam luz, Ensaios sobre a total libertação e Quando tudo era ruína, amor, é também papai da Clarissa. Tuíta em @rogerssilva. 
 
* Uma parceria com a Revista O Bule.
 
Ilustração: Pixabay

Comentários

Zoraya Cesar disse…
que belo texto sob a perspectiva infantil. A gente elabora a tristeza de um jeito diferente.

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