UM DESVIO NO CAMINHO É OUTRO CAMINHO - 1a parte >> Zoraya Cesar

A guerra entre os Desestabilizadores e os Caminhantes da Luz chegara ao fim. E, com ela, muitas outras coisas também. Os adeptos do Caos se recolheram e se misturaram ao mundo, indetectáveis. Seus adversários se juntaram em clãs para resgatar e ensinar a Tradição às novas gerações, ajudar pessoas e se preparar para o próximo embate – sabiam que o Equilíbrio Cósmico de Tudo o que Há é uma força dinâmica.

A Curandeiria é uma Arte, uma Ciência.
Seus praticantes usam o que existe
na natureza para amenizar sofrimentos,
promover a cura.
Mas há quem use seus conhecimentos
para outros fins...
Um desses clãs fundou a Escola de Curandeiria e Artes Mágicas dos Dez Círculos. A melhor. Seu lema: Compaixão e Combate. Seu símbolo: uma caveira e um frasco cheio de ervas. O aluno saía apto a preparar elixires de cura e venenos mortais; a reconhecer e sanar doenças do corpo, do espírito e do campo magnético; a sobreviver em condições extremas. E a lutar quando fosse necessário. 

-----------------

A criatura descolou-se do tronco da árvore e desceu, farejando o entorno. Suas garras escavavam a terra, impaciente. Faminto. E sedento por sangue. 

Parecia um grande porco-espinho sem olhos ou boca. Captava as vibrações ao redor, distinguindo a forma, tamanho e espécie de qualquer vivente em até dois metros de distância. Era extremamente rápido e letal. Lançava seus dardos envenenados em direção ao oponente, atordoando-o quase imediatamente. Enquanto a toxina fazia efeito, ele se aproximava e, pelas centenas de pequenas ventosas dispostas ao longo de seu ventre, sugava o sangue da vítima ainda viva. Muito poucos sobreviveram ao ataque de um Craobh. Podia passar dezenas de anos dormindo grudado e disfarçado ao tronco de uma árvore até que fosse invocado a atacar. Quando as guerras acabaram e os senhores do Caos se retiraram, praticamente todas essas criaturas recolheram-se ao seu sono profundo. 

Craobh, o terror das florestas despertara. Alguém o invocara. Algo estava errado no Equilíbrio.

-------------------

A sala e a cozinha eram uma coisa só, e uma coisa só um pouco bagunçada à primeira vista. Havia quatro balcões voltados para os pontos cardeais repletos de panelas, vidros, ervas, pós, folhas, flores, sementes, e, a bem da verdade, também alguns restos secos de animais mortos. Um forno e um fogão a lenha encimados por uma chaminé de tijolos. Uma mesa de madeira velha de onde nasciam algumas orelhas de pau. E um grande caldeirão de ferro. Olhando de novo, todavia, percebia-se que tudo estava imaculadamente limpo e que obedecia a uma ordem lógica. 

Carta XVI - A Torre.
Tudo é impermanente.
Quando os sinais são claros,
ou você toma uma atitude
ou a mão invisível do Destino te
força a tomar um rumo..
Sentada à mesa, uma mulher de cabelos curtos encaracolados e verdes embaralhava um tarô e tirava a carta do dia. 

A torre. De novo.

A Torre. A mão de Deus. O raio destruindo as estruturas. O indivíduo sendo lançado ao desconhecido, violentamente e à sua revelia, destruídos os alicerces sobre os quais se apoiara até então. Um desvio no caminho, inesperado e indesejado.

Margoleen sentia-se amedrontada. Os sinais vinham cada vez mais claros: a Torre saindo diariamente, há semanas; os rios exalavam cheiros pestilentos; animais domésticos desapareciam sem deixar vestígios; crianças pequenas choravam a noite inteira sem motivo aparente. As sábias anciãs das aldeias próximas mandavam dezenas de pessoas pedirem ajuda à amiga Curandeira.

Desde que terminara a Escola de Curandeiria e Artes Mágicas dos Dez Círculos, Margoleen habitava aquela casa na fímbria da floresta de carvalho e açucenas. Lá fazia seus preparados mágicos e recebia clientes. Era uma reclusa. Só saía para atender emergências ou visitar uma sábia anciã. Dos amigos, alguns terminaram o 10º Círculo, permaneceram na Escola e se tornaram mestres-curandeiros. Margoleen, Curandeira do Nono Círculo, poderosa e eficiente como qualquer deles, mas sem o título nem a permissão de portar a Espada das Invocações ou ler o livro do Caos. 

Margoleen não plantara Lilium_candidum -
açucenas - à toa.
Seu simbolismo é ligado ao
sagrado e à cura.
Levantou-se, pesada e descontente. Algo importante e perturbador estava prestes a acontecer e não atinava o que pudesse ser. Resolveu que, naquele dia, prepararia poções de proteção e as levaria às sábias anciãs. Quando não se sabe contra o quê, exatamente, precisamos nos defender, uma medida acauteladora deve ser tomada. Entrou em estado de meditação intuitiva e pôs-se a trabalhar. 

Quando deu por si, o cheiro forte da dama da noite prenunciava o fim do dia. Rompeu o estado meditativo e olhou em volta, satisfeita: tudo pronto, arrumado e limpo. Foi só quando se sentou para comer que percebeu, sobre um dos balcões,  um frasco de Óleo da Passagem que não lembrava de ter preparado. O unguento para passar no corpo de alguém prestes a morrer. Por que fizera aquilo? Quem estaria prestes a morrer?

O corvo que morava no telhado começou a grasnar agoniadamente, anunciando uma emergência à entrada da casa. Margoleen correu  para ver o que estava acontecendo. 

Levou um susto imenso ao abrir a porta e deparar com sua mestra Hosmaryn desmaiada, ferida e quase exangue. 

O primeiro raio, pensa Margoleen, atordoada, atinge a minha Torre.

----------------

Continua dia 7 de fevereiro

--------------------

Imagens

Açucena
Page URL:
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:01-Lilium_candidum_madonna_lily.jpg
File URL:
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/54/01-Lilium_candidum_madonna_lily.jpg
Attribution:
I, Ranger [CC BY-SA (http://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/)]

Ervas

Comentários

Érica disse…
Zorayeb, você bem sabe que não sou chegada nessas estórias muito fantásticas, né? Mas não posso deixar de dizer que, como sempre, foi muito bem escrita e descrita, com detalhes que sempre fazem o leitor se embrenhar na narrativa, visualizando item a item das imagens, passo a passo dos caminhos percorridos. Well done!
fantástica e cruel, como esperar até 07/02 para ver a continuação dessa história maravilhosa? é pior que aguardar segunda temporada de série do netflix...
Anônimo disse…
Como já mencionei pesquise sobre os Sumérios, Anunnakis. Vai ter bastante material para se distrair ou pirar de vez! Hehehe...
https://kupdf.net/download/annabel-sampaio-anunnakis-os-deuses-astronautas_590394ffdc0d60c611959f0b_pdf
branco disse…
me remete para as paisagens irlandesas/celtas e ao som de flautas e didjeridu. aguardemos outras sonorizações tão boas quanto seu texto (se isso, for possível !)...
Albir disse…
Me remete ao paradoxo do pesadelo na insônia. Mas sigo feliz, embriagado não sei bem se de névoa ou fumaça. Tenho medo de algum dia não voltar desses seus mundos, Zoraya.
Zoraya Cesar disse…
Erica - exatamente pq sei q vc nao gosta desse gênero, é que agradeço feliz o seu elogio! Valeu, Amiguinha.

Ana Luzia - hahaha, puxa, Aninha, nem te conto, mas vai ter mais que duas partes... e benza Deus as tuas palavras!

Anônimo - já tá na minha lista de pesquisas! Obrigada!Toda referência é boa.

lord white - meu medo é decepcionar suas expectativas sempre generosas. Vc e o Marcio me dão medo.

Albir - Dom Albir, seu comentário, por si só, além de altamente elogioso e envaidecedor, é, acima de tudo, uma peça literária de imensa qualidade. E lindo! Nada a estranhar vindo de Dom Albir.

Postagens mais visitadas