O QUE É BOM CUSTA CARO >> Albir José Inácio da Silva
Ismarte era pra juntar Ismael do
pai com Hildegarde da mãe, mas a dicção estava confusa depois das comemorações
etílicas que precederam o comparecimento ao cartório.
Esse pequeno contratempo,
entretando, não impediu o desenvolvimento de uma habilidade de que sempre ele se
orgulhou. Pertence ao seleto grupo de humanos que não carece de uma desgraça
própria para aprender, aprende com a dos outros.
E foi assim, crítico embora
solidário, que acompanhou as desventuras do pobre Rivonildo que, além de amigo,
compartilhava com ele a fé inabalável nas coisas do além. Identificou logo que
o problema do outro estava na opção quase permanente pela xepa.
Quando viu a história do
Rivonildo retratada no Crônica do Dia, teve certeza do que já sabia. Reconheceu
de imediato a fidelidade da narrativa, já que a ouvira da própria vítima, e isso
o levou a acreditar também nas conclusões da autora: “se quer coisa boa, pague
o preço justo!”. E estava disposto a pagar, o mundo exotérico não é para os
avarentos.
Ismarte estava com as contas controladas,
mas já teve sérios problemas com cheques, créditos e cartões. Amargou um surto agudo
de consumo para compensar o abandono por parte da Dorinha. Levou muito tempo
pagando bancos e agiotas. Agora as contas estavam em dia, mas ficaram os
traumas.
Ismarte conversou com uma amiga
comum, versada em esoterismos e afins, de quem Rosenildo não ouvira as
advertências, e teve certeza de que estava no caminho certo. Não iria repetir o erro, não era sovina e não
estava na miséria. As entidades teriam o melhor.
A amiga indicou-lhe o que
garantiu ser o melhor - Paipóstolo Pedro das Sete Pedras - que não pedia nada para
ele, mas para as oferendas, trabalhos sociais e viagens espirituais. O preço
obrigou Ismarte a usar seus dois cartões de crédito. Teve medo, mas era um
homem e não um rato.
- Vou direto ao assunto que não
temos tempo a perder nem eu nem você – disse o Paipóstolo.
Ismarte já gostou disso. Não
tinha enrolação.
- Você veio por causa de amor,
dinheiro e posição, tô errado? Você conseguiu se estabilizar nessa vidinha
medíocre sem promoção, sem amor, sem emoção. Só paga as contas e vegeta, tô errado?
- Bem... não... eu ... de certa
forma...
- Para de mimimi! Nós vamos
resolver isso, nós vamos fazer os trabalhos, mas eu não aceito falsificação.
Tenho aqui os produtos já consagrados, que são os únicos que funcionam. Isso se
você quiser, porque o que não falta por aí é charlatão que cobre barato.
- Não... não... eu quero –
balbuciou Ismarte.
Teve de ligar para o gerente do
banco e adquirir quilos de seguros e investimentos que não queria, depois de
implorar um aumento de emergência no limite do cheque especial. Bem, “se quer
coisa boa, pague o preço justo” – lembrou-se da escritora.
Mais de duas horas depois saiu de
lá com uma sacola cheia de objetos sagrados e uma folha de instruções.
Atrapalhou-se para atender no celular um colega meio cochichando que ouviu um
boato de que seu setor ia acabar e ele seria promovido a chefe de departamento.
Precisou segurar-se na parede,
com taquicardia, desacostumado que estava com fortes emoções. Teve certeza de
que os efeitos da intervenção de Paipóstolo já se apresentavam. Valeu cada
centavo que ainda teria de pagar.
*****
Ismarte volta ao trabalho já
quase no final do expediente, cantarolando e fazendo cara de quem não sabe de
nada. “As mudanças que esperamos começam a mudar nossa vida agora” – filosofa.
E pela primeira vez na vida pensa em comemoração, mas lembra-se de que não tem
mais dinheiro.
Seu melhor amigo hesita um pouco,
não tem dinheiro. Mas empresta o cartão de crédito para o happy hour depois do expediente com tudo pago num restaurante próximo.
Até colegas de outros departamentos são convidados.
Como o diretor não chegava na
festa, Ismarte liga pra ele. “Não posso falar a gora, a diretoria está reunida,
assunto sério” – sussurra o chefe.
“Deve ser a minha promoção” –
pensa o nosso herói – “as bênçãos estão
só começando.”
E é mesmo o que parece. Da mesa
na janela vê Dorinha, seu grande amor, cabisbaixa e meio sem graça como sempre.
Mas quando ele acena, ela se abre num sorriso e retribui o aceno muitas vezes. Depois
de passar, ainda se volta duas vezes para sorrir. O coração apaixonado tem mais
uma taquicardia e agradece à amiga que indicou o Paipóstolo.
Não para de chegar gente, a
cozinha despeja freneticamente as porções e os empregados suam carregando as
bandejas de chope. Os colegas se lembrarão da festa por muitos anos. Só o
colega que emprestou o cartão acompanha preocupado.
O diretor liga, finalmente. “Agora
ele tá chegando”, conclui Ismarte.
Não, ele não vem. Mas a coisa é
pior do que ele não vir. “De fato o seu setor vai acabar, corte de despesas,
corte de pessoal, você inclusive. Sinto muito, fiz o que pude, mas não teve
jeito”.
Ismarte não acredita, deve ser
pegadinha do chefe e dos colegas, sempre pândegos!
Dorinha passa de volta sob a
janela, só que abraçada com o Júlio, antigo desafeto e rival do Ismarte.
Nova taquicardia, segura-se na
mesa, mas cai na cadeira. Dor no peito, respira com dificuldade.
Os colegas percebem os olhos fixos
no vidro e a mão no peito. Os celulares disparam ligações aflitas.
Ismarte ainda ouve a sirene do
SAMU, mas tudo escurece.
Comentários
Adorei, Albir. :)
Ismarte... Ismarte... vou dormir pensando em Ismarte