TRÊS ROLINHAS >> Leonardo Marona
Meu dia na praia não tinha sido bom depois de quatro meses longe. A areia tinha entrado nos lugares errados, o mate de galão não tinha passado, o queijo coalho parecia coalhado. Tinha resolvido ir de bicicleta do Flamengo até Ipanema, o diabo sabe por quê. Chegando lá, imediatamente começou a chover. O dia estava maravilhoso: cinzento, pesado, solene. Era um dia que te exigia atenção. Mas pegar chuva em cima da bicicleta valia pelas tuas duas bolas do saco amassadas. De qualquer forma, não havia o que fazer. Calcei os tênis, meu pé estava molhado e cheio de areia. Respirei fundo. Olhei para os tênis. Eram brancos, estavam escuros, com dois rasgos dos lados da sola, os cadarços esfolados, cheiravam a chorume. Joguei fora os tênis na primeira lata laranja e montei na bicicleta. O pedal tinha pontas de plástico que me foderam a paciência e as solas do pés. Voltei à lata laranja. Os tênis estavam virados de cabeça para baixo sobre uma gosma esverdeada, com uns fiapos de espaguete presos aos cadarços. Foi quando dei de cara com minha ex-guria chegando a pé.
Ela parecia sempre linda. Era o meu tipo, senão exato, quase o possível. Mas eu era quadrado demais pra ela. Bebia demais pra ela, era expansivo demais, talvez, vai ver ela me achava um psicótico, um chorão. Foda-se, não importa, nem eu mesmo sei o que eu sou. A gente se apaixona pelos motivos mais loucos. Na verdade é a loucura quem se apaixona no seu lugar e não você. Por isso tudo acaba em choros e facadas noturnas. O que importa é que nos cumprimentamos com a maior cordialidade, “te liguei hoje, deixei recado”, eu disse, “eu sei, eu vi, liguei pra sua casa mas ninguém atendeu”, ela respondeu. Então ficamos uns dez segundos tentando nos olhar nos olhos, mas não conseguimos. Paramos na clavícula. Ficávamos apenas olhando pra baixo, às vezes pro céu, acho que falamos sobre o tempo cinza, mas não havia mais aquele arranque, aquele tiro, estávamos atados para sempre a um comportamento cordial, indiferente e cálido, como o dos estupradores depois de presos. Eu me sentia lesado. Tinham levado o meu amor. Não me refiro à guria, é claro, sou louco mas ainda não estou doente. Estou falando do amor que eu era capaz de sentir por uma pessoa, como eu era capaz de sentir por ela. Estou falando de um tipo de amor pelas coisas fundamentais da vida, um tipo de apego pelo infinito delas. A brincadeira agora era diferente e não tinha mais muita graça: brincar de se desapegar das coisas até sobrarem somente as que importassem. Ou seja: você olhando pro teto sem saber para onde andar, se pro banheiro, pra cozinha, pra sacada ou pro poço do elevador. Estava amarrado, não podia fazer nada. E não me deram nada em troca para encher o lugar do amor. Nada além da brincadeira do desapego, que talvez fosse saudável se eu fosse um poeta ou tivesse muito dinheiro. Assim como era, parecia um golpe cruel. Um roubo. Um roubo grosseiro. Um ladrão honesto deixaria no mínimo um revólver ou uma caixa com 12 latas. Mas afinal, nunca te dão nada. Apenas te sugam. Você tem que dar tudo. Esse é o ritmo. Um roubo. Um roubo cruel. Um tiro de chumbo a cada segundo.
Deixando a praia na bicicleta, me sentia tonto e morto de sede. Os olhos viam coisas demais. Casais passeando debaixo de sorrisos amedrontados. O fim do sol rindo da mentira do universo de um lado. A chuva chorando por ela do outro. Velhos jogando dominó sobre latões de lixo, esperando a morte nascer. Garis mexendo com mulheres de bunda grande e avental que colhiam sementes num rosário de plástico. Bem-nascidos nos seus patins, nos seus tênis de cânhamo de 300 dólares e nas suas camisas floridas e peles bronzeadas e a certeza de que nada de mais pode acontecer senão a morte em volta de uma família reunida pela repartição das partes, quando os bem-nascidos já forem bem-mortos. Coisas que não estavam lá de fato. Eram tão transitórias quanto o ar. E meus olhos não podiam ver o ar se mexendo. Meus olhos estavam doentes de ver sem entender nada. Por um momento pensei se havia alguma coisa que estivesse no seu lugar certo. A cabeça, concluí, fechada nas nuvens do céu cinzento. Entrei no mergulho da Lagoa em disparada, pensando em mil bobagens, e meus diálogos pareciam em ordem. Muito boa, pensei. Só que não era a minha ordem. Tocava a quinta de Mahler no rádio de pilha, ou então talvez fosse uma música de cordas de cortar os pulsos do Bach, uma que eu já tinha ouvido num filme italiano... E tinha gostado do filme... Talvez Pasolini... Pois é, eu estava maluco. Mas não seria nem o primeiro nem o último. Isso me fazia sentir bem. A transição das coisas.
Na área dos pedalinhos, desviei de rota por uma estrada esburacada de terra. Não entendi por que tinha feito aquilo e saltei da bicicleta, para levá-la de volta pela mão até a ciclovia. Parei e anotei num papel que levava na mochila: “bifurcação – estrada de terra esburacada – falar com analista”. Passou por mim andando um sujeito de camisa regata no estilo Cana Longa, daquelas de náilon, faixa verde fosforescente embaixo e azul em cima. Estava com um fone nos ouvidos também, aparentemente fumando um baseado. Se você olhasse com bastante atenção, provavelmente era um baseado. Balançava a cabeça, cantava alguma coisa, levantava os braços pro alto. De longe parecia que estava conversando com alguém. Olha ali... Mais um, pensei. E me lembrei que tinha também um baseado. Me senti mal quando lembrei disso. Talvez fosse Brahms.
Não havia o que fazer senão sentar na grama e fumar. Coçar as orelhas talvez. Brincar de ser mordido por formigas vorazes de bunda vermelha. Tentar olhar mais uma vez pro céu. Fazer as pazes. Não havia paz. Ele continuava cinza e furioso como qualquer ditador em véspera de feriado nacional. Era meu ditador. Na maioria das vezes. Sentei e fiquei tentando me concentrar na música e na minha vida. Uma hora fiquei apenas com a música. Agora era certamente um arioso do Bach. Bem na hora em que eu reparei em três rolinhas ciscando na minha frente.
Por algum motivo eu sabia de cara que eram uma fêmea e dois machos. A rolinha fêmea bicava grãos no chão, olhando o tempo todo, mecanicamente, pro chão e pra frente. Os machos bicavam grãos também. Olhavam só pra baixo e uma vez pra fêmea. Os dois ao mesmo tempo. Uma vez só. Como homens machos, só precisavam de uma vez. Então já tinham motivo suficiente para morrer.
Percebi que a rolinha fêmea era capaz de mexer os olhos de maneira independente. Com um podia achar o grão e com outro sentia-se disputada. Também seria capaz de viver assim, foi o que pensei.
Depois de terem olhado uma vez cada um para a rolinha fêmea, os machos passaram a se encarar o tempo todo. Um macho, a certa hora, cansado de olhar pro outro macho e não fazer mais nada, resolveu mostrar serviço. Levantou uma asa só e começou a rodear a fêmea, que acabou tendo que fugir.
O outro macho então se meteu na frente dele com as duas asas levantadas. Deu um pio esganiçado. Levantou a cabeça no alto. O pescoço esticado em camadas de pena. A fêmea escapou p’rum lado e continuou com seus caroços podres e restos mortais no chão.
Sentindo-se intimidado e inseguro, o primeiro macho começou a piscar muitas vezes seguidas e parou na frente do rival, apenas uma asa levantada. O outro parecia a águia da liberdade, era um condor. O primeiro começou então a recuar.
A rolinha-condor deu um impulso para frente e foi mais rápido do que os olhos rápidos de uma asa só. Deu uma bicada fulminante e acertou o outro em cheio no olho direito. Ele só conseguiu cair para trás e se debater no chão com um buraco de sangue no lugar do olho. Agora mexia as duas asas, finalmente. Era tudo ou nada pra ele. Tinha sido abatido ou quem sabe ia sobreviver. Uma decisão em duas. Pra todo mundo acaba sendo assim mais cedo ou mais tarde.
O condor que conseguia levantar as duas asas se aproveitou da sua condição favorável e fez como a música: bateu asas e voou.
A fêmea continuava nos arredores, bicando suas larvas, suas ervas daninhas, suas pulgas e carrapatos, suas merdas de gato e de cães, suas lagartas que queimam quando você toca nelas. Ela bicava e olhava pra frente. Depois bicava e olhava pra frente outra vez. Parecia completamente independente, segura de si e estúpida.
Os humanos têm muito que aprender com as rolinhas. Eu aprendi duas coisas hoje:
Bique sempre e olhe para frente.
Faça isso o tempo todo.
Mas não esqueça de manter as duas asas erguidas.
Ela parecia sempre linda. Era o meu tipo, senão exato, quase o possível. Mas eu era quadrado demais pra ela. Bebia demais pra ela, era expansivo demais, talvez, vai ver ela me achava um psicótico, um chorão. Foda-se, não importa, nem eu mesmo sei o que eu sou. A gente se apaixona pelos motivos mais loucos. Na verdade é a loucura quem se apaixona no seu lugar e não você. Por isso tudo acaba em choros e facadas noturnas. O que importa é que nos cumprimentamos com a maior cordialidade, “te liguei hoje, deixei recado”, eu disse, “eu sei, eu vi, liguei pra sua casa mas ninguém atendeu”, ela respondeu. Então ficamos uns dez segundos tentando nos olhar nos olhos, mas não conseguimos. Paramos na clavícula. Ficávamos apenas olhando pra baixo, às vezes pro céu, acho que falamos sobre o tempo cinza, mas não havia mais aquele arranque, aquele tiro, estávamos atados para sempre a um comportamento cordial, indiferente e cálido, como o dos estupradores depois de presos. Eu me sentia lesado. Tinham levado o meu amor. Não me refiro à guria, é claro, sou louco mas ainda não estou doente. Estou falando do amor que eu era capaz de sentir por uma pessoa, como eu era capaz de sentir por ela. Estou falando de um tipo de amor pelas coisas fundamentais da vida, um tipo de apego pelo infinito delas. A brincadeira agora era diferente e não tinha mais muita graça: brincar de se desapegar das coisas até sobrarem somente as que importassem. Ou seja: você olhando pro teto sem saber para onde andar, se pro banheiro, pra cozinha, pra sacada ou pro poço do elevador. Estava amarrado, não podia fazer nada. E não me deram nada em troca para encher o lugar do amor. Nada além da brincadeira do desapego, que talvez fosse saudável se eu fosse um poeta ou tivesse muito dinheiro. Assim como era, parecia um golpe cruel. Um roubo. Um roubo grosseiro. Um ladrão honesto deixaria no mínimo um revólver ou uma caixa com 12 latas. Mas afinal, nunca te dão nada. Apenas te sugam. Você tem que dar tudo. Esse é o ritmo. Um roubo. Um roubo cruel. Um tiro de chumbo a cada segundo.
Deixando a praia na bicicleta, me sentia tonto e morto de sede. Os olhos viam coisas demais. Casais passeando debaixo de sorrisos amedrontados. O fim do sol rindo da mentira do universo de um lado. A chuva chorando por ela do outro. Velhos jogando dominó sobre latões de lixo, esperando a morte nascer. Garis mexendo com mulheres de bunda grande e avental que colhiam sementes num rosário de plástico. Bem-nascidos nos seus patins, nos seus tênis de cânhamo de 300 dólares e nas suas camisas floridas e peles bronzeadas e a certeza de que nada de mais pode acontecer senão a morte em volta de uma família reunida pela repartição das partes, quando os bem-nascidos já forem bem-mortos. Coisas que não estavam lá de fato. Eram tão transitórias quanto o ar. E meus olhos não podiam ver o ar se mexendo. Meus olhos estavam doentes de ver sem entender nada. Por um momento pensei se havia alguma coisa que estivesse no seu lugar certo. A cabeça, concluí, fechada nas nuvens do céu cinzento. Entrei no mergulho da Lagoa em disparada, pensando em mil bobagens, e meus diálogos pareciam em ordem. Muito boa, pensei. Só que não era a minha ordem. Tocava a quinta de Mahler no rádio de pilha, ou então talvez fosse uma música de cordas de cortar os pulsos do Bach, uma que eu já tinha ouvido num filme italiano... E tinha gostado do filme... Talvez Pasolini... Pois é, eu estava maluco. Mas não seria nem o primeiro nem o último. Isso me fazia sentir bem. A transição das coisas.
Na área dos pedalinhos, desviei de rota por uma estrada esburacada de terra. Não entendi por que tinha feito aquilo e saltei da bicicleta, para levá-la de volta pela mão até a ciclovia. Parei e anotei num papel que levava na mochila: “bifurcação – estrada de terra esburacada – falar com analista”. Passou por mim andando um sujeito de camisa regata no estilo Cana Longa, daquelas de náilon, faixa verde fosforescente embaixo e azul em cima. Estava com um fone nos ouvidos também, aparentemente fumando um baseado. Se você olhasse com bastante atenção, provavelmente era um baseado. Balançava a cabeça, cantava alguma coisa, levantava os braços pro alto. De longe parecia que estava conversando com alguém. Olha ali... Mais um, pensei. E me lembrei que tinha também um baseado. Me senti mal quando lembrei disso. Talvez fosse Brahms.
Não havia o que fazer senão sentar na grama e fumar. Coçar as orelhas talvez. Brincar de ser mordido por formigas vorazes de bunda vermelha. Tentar olhar mais uma vez pro céu. Fazer as pazes. Não havia paz. Ele continuava cinza e furioso como qualquer ditador em véspera de feriado nacional. Era meu ditador. Na maioria das vezes. Sentei e fiquei tentando me concentrar na música e na minha vida. Uma hora fiquei apenas com a música. Agora era certamente um arioso do Bach. Bem na hora em que eu reparei em três rolinhas ciscando na minha frente.
Por algum motivo eu sabia de cara que eram uma fêmea e dois machos. A rolinha fêmea bicava grãos no chão, olhando o tempo todo, mecanicamente, pro chão e pra frente. Os machos bicavam grãos também. Olhavam só pra baixo e uma vez pra fêmea. Os dois ao mesmo tempo. Uma vez só. Como homens machos, só precisavam de uma vez. Então já tinham motivo suficiente para morrer.
Percebi que a rolinha fêmea era capaz de mexer os olhos de maneira independente. Com um podia achar o grão e com outro sentia-se disputada. Também seria capaz de viver assim, foi o que pensei.
Depois de terem olhado uma vez cada um para a rolinha fêmea, os machos passaram a se encarar o tempo todo. Um macho, a certa hora, cansado de olhar pro outro macho e não fazer mais nada, resolveu mostrar serviço. Levantou uma asa só e começou a rodear a fêmea, que acabou tendo que fugir.
O outro macho então se meteu na frente dele com as duas asas levantadas. Deu um pio esganiçado. Levantou a cabeça no alto. O pescoço esticado em camadas de pena. A fêmea escapou p’rum lado e continuou com seus caroços podres e restos mortais no chão.
Sentindo-se intimidado e inseguro, o primeiro macho começou a piscar muitas vezes seguidas e parou na frente do rival, apenas uma asa levantada. O outro parecia a águia da liberdade, era um condor. O primeiro começou então a recuar.
A rolinha-condor deu um impulso para frente e foi mais rápido do que os olhos rápidos de uma asa só. Deu uma bicada fulminante e acertou o outro em cheio no olho direito. Ele só conseguiu cair para trás e se debater no chão com um buraco de sangue no lugar do olho. Agora mexia as duas asas, finalmente. Era tudo ou nada pra ele. Tinha sido abatido ou quem sabe ia sobreviver. Uma decisão em duas. Pra todo mundo acaba sendo assim mais cedo ou mais tarde.
O condor que conseguia levantar as duas asas se aproveitou da sua condição favorável e fez como a música: bateu asas e voou.
A fêmea continuava nos arredores, bicando suas larvas, suas ervas daninhas, suas pulgas e carrapatos, suas merdas de gato e de cães, suas lagartas que queimam quando você toca nelas. Ela bicava e olhava pra frente. Depois bicava e olhava pra frente outra vez. Parecia completamente independente, segura de si e estúpida.
Os humanos têm muito que aprender com as rolinhas. Eu aprendi duas coisas hoje:
Bique sempre e olhe para frente.
Faça isso o tempo todo.
Mas não esqueça de manter as duas asas erguidas.
Comentários