CATADORES DE ALMAS - 3a e última parte - Uma aventura de Lucrécio Lucas e Padre Tércio >> Zoraya Cesar


O Catador roubara uma alma na presença de Padre Tércio. Agora, urgia resgatar a alma e devolvê-la a seu caminho, para que o Equilíbrio de Todas as Coisas se mantivesse, e para a paz do morto. Catadores de Almas eram seres perigosos. Mas Pe. Tércio conhecia a pessoa certa para essa difícil e arriscada missão. Lucrécio Lucas era seu nome. 

Como sabemos, a alma, ao partir, deixa algumas marcas, impressões, nas coisas que mais amava ou das quais tinha medo. A partir daí, era como seguir as pegadas de um animal na neve até o covil onde o Catador aprisionava as almas que roubara. 

O problema é que essas impressões duravam pouco. As interferências emocionais dos viventes, poluição, ondas eletromagnéticas, tudo causava interferência e acabava por misturar ou, mesmo, apagar os rastros. Por isso, Lucrécio Lucas não quis esperar. Caçaria sozinho, contrariando seus princípios e treinamento.

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De acordo com as informações colhidas por Padre Tércio junto à família, o morto frequentava diariamente a padaria ao lado de casa, batia papo com os vizinhos, pedia uma média com pão na chapa. Lucrécio foi até lá: sentou,  fez o mesmo pedido, e ficou quieto,  sentindo o ambiente. Passava do meio-dia,  quando, finalmente, conseguiu captar as emoções do morto numa emanação da alma. Ótimo. Que sorte. Não precisaria ir ao cemitério esperar que  o medo do falecido de ser enterrado vivo lhe desse alguma pista. 

O desafio agora era manter-se concentrado e sintonizado com a lembrança do falecido, enquanto seguia seu rastro pela cidade – enfrentando trânsito e barulho, entrando em lugares desconhecidos. Se  ele se distraísse, o rastro sumiria, e tudo estaria perdido.
  
Ao entardecer, chegou a um local ermo, uma área rural pouco distante da cidade. Rodou mais alguns quilômetros, até que a sintonia com a alma que procurava tornou-se tão forte que ele acabou por encontrar uma casa enfurnada no mato, de madeira apodrecida e tijolos quebrados. O antro onde encafuava-se a criatura e seu butim de infelizes almas escravizadas. Uma fumaça amarelada de odor acre e penetrante saía pela chaminé. Essa criatura maldita  está cozinhando tutano! Além de almas rouba cadáveres também. Desgraçada!

Escurecia. O perigo aumentara. À noite, esses seres tornavam-se mais fortes, enquanto ele, naturalmente, perdia a acuidade dos sentidos. Fora o cansaço do dia, concentrando-se, dirigindo, caçando. O Grupo e Pe. Tércio sabiam onde ele estava, mas Lucrécio resolveu não esperar que chegassem. Podia ser tarde demais. Tinha de tentar salvar aquelas almas e, se possível, matar aquela criatura ardilosa e maléfica. 

Deu início à sua estratégia. 

Seres trevosos simplesmente não suportam música de alta vibração. Bach, Mozart, Verdi podem provocar desconforto intenso, dores incapacitantes ou, em alguns casos, a dissolução da criatura. Lucrécio escolhera Verdi. 432Hz. A mais alta vibração. 

A alta vibração das composições
de Bach, Mozart, Verdi
são nefastas
para seres das trevas
A música atrairia o ente para fora de casa (jamais entre no covil de um Catador de Almas. A perdição é certa). Certamente viria armado, mas Lucrécio teria de arriscar. Precisava entoar, em itelmen, próximo ao ouvido da criatura, a oração de esconjuro do antigo povo da Península de Kamchatka, o primeiro a relatar a existência de Catadores de Almas. Uma manobra perigosa, sem dúvida, mas a única possível.  

Colocou a música. Tremia. Acostumado que estivesse a esses embates contra o Mal, toda luta é imprevisível, por mais planejada que tenha sido. Estava prestes a encontrar um monstro que nunca enfrentara, contando apenas com seus conhecimentos, sua coragem e a vontade de cumprir sua Missão. 

A situação lúgubre fez o momento parecer uma despedida,  uma elegia. Sorriu. Sim, um canto fúnebre, mas não só para mim. Venha, maldito, encontrar,  você também, o seu destino

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Quase que imediatamente um homem pequeno e andrajoso saiu de casa, aos gritos. Sua aparência causaria pesadelos nos mais fracos, a cabeça grande, as mãos longas e esquálidas, a pele pendurada no rosto. Magro, ossudo, tinha o aspecto quebradiço de um velho apodrecendo ao relento por anos a fio. Eram, literalmente, putrefatos em vida, por escolha própria. Lucrécio sabia que aquela fragilidade era falsa. Catadores roubavam almas para serem longevos - o corpo podia entrar em decrepitude, mas a força do Mal não os abandonava. 

Ainda berrando assustadoramente, a criatura lançou contra Lucrécio uma pequena seta, fina e flexível. O projétil voou com força e velocidade e, não fossem seus reflexos treinados, Lucrécio seria atingido no centro do corpo e teria, com certeza, morrido na hora. A seta trespassou seu flanco de lado a lado e ali ficou. O sangue borbotou, quente e abundante. Essa a característica das setas mágicas Iyne, do Quirguistão: apesar de finas, abriam um orifício muito maior que seu diâmetro, causando um estrago mais que considerável no alvo.

Embora acostumado à dor, o sofrimento causado pela ferida era excruciante.  Lucrécio sabia que, se não virasse a luta rapidamente a seu favor... O Catador era forte, mas a música começava a derreter suas entranhas podres. Ele também precisa terminar logo com aquilo. A pressa foi sua perdição. Num movimento imprudente, aproximou-se ao alcance de Lucrécio, que o agarrou como uma tenaz.

Sob a lua minguante, uma luta quase épica. O humano, suando em dores e perdendo sangue incessantemente. Uma criatura decomposta, forte, mas derretendo-se em agonia. O ar tremia ao som surdo dos gritos das almas aprisionadas. E Lucrécio percebeu que seu pavor de morrer sozinho começava a dominá-lo, à medida que o cheiro de seu próprio sangue, escorrendo pegajoso pela perna, subia a suas narinas. Sozinho, vou morrer sozinho nas mãos de um Catador, minha alma se perderá, as outras também e as criaturas da noite comerão meu corpo e...

Lucrécio Lucas não era um Caçador qualquer. Era experiente, tinhoso e, antes de tudo, um homem de fé. Do fundo de suas memórias akáshicas despertou a força ancestral de Combatente do Equilíbrio da Luz. Nunca estou sozinho. Comigo está o Espírito dos companheiros que já se foram. E tenho a minha Grande Mãe a me cobrir com seu manto azul sagrado. 

Assim, apesar da dor alucinante, do medo, do muito sangue que perdia, do asco pelo contato com ser tão abjeto, da dificuldade em pronunciar as palavras naquela língua estranha, conseguiu fazer a oração dentro do ouvido da criatura, o que, juntamente com a música terminou por matar o Catador de Almas. 

O último grito lançado pela criatura antes de se dissolver em tormento ribombou no cérebro cansado de Lucrécio Lucas como o tambor da morte, pesado e grave. Ele caiu de borco no chão. A perda de sangue, a dor - agora insuportável -, a cabeça explodindo... Percebeu que a Dama da Despedida já estava à espreita, sorrindo, convidativa. Ele agradeceu. Seja bem-vinda, Amiga. Acabe com esse suplício. Ainda teve forças para pedir misericórdia para as almas que ali estavam, sem saber para onde ir, presas fáceis de outros Catadores. 

Vou morrer em agonia, mas, pelo menos, morrerei ao som de Verdi...

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Seus companheiros, no entanto, chegaram a tempo de socorrê-lo. (É surpreendente como mesmo uma luta espiritual pode depender de coisas comezinhas, como a hora do rush...). Salgaram a terra onde morrera o Catador e atearam fogo à casa maldita, enquanto Pe. Tércio libertava as almas e as encomendava a seu Destino. 

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Lucrécio Lucas só se dava a
 um luxo: sempre
havia uma garrafa
de Rémy Martin 
em sua adega.
Convalescendo, dolorido e febril, Lucrécio Lucas estava feliz. Enfrentara seus medos, enfrentara a morte e cumprira sua Missão. O que mais poderia querer? 

Férias, pensou. Férias, uma dose de Rémy Martin XO. E a boa prosa de Pe. Tércio. 

Levantou-se para providenciar. Afinal o que é uma dor perante a possibilidade da vida?

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Outras aventuras de Lucrécio Lucas, algumas com Padre Tércio

Os Caçadores - um dia da caça, outro do caçador. 

I Maledetti - todos malditos: vítimas e algozes

O Gato - parte 1 - nem durante as férias ele descansa

O Gato - parte 2 - mas a vida e a morte são assim mesmo

Caçadas noite adentro - nem tudo é o que parece; aliás, nada é o que parece

Viúva Negra - nem sempre o mau se dá mal

A Amante - a origem do nome do Lucrécio Lucas

A hora dos mortos - parte 1 - quando uma Alma pede ajuda

A hora dos mortos - parte 2 - quando a Alma recebe a ajuda.

Catadores de Almas - parte 1 - Você pode não acreditar em Catadores de Almas. Mas eles acreditam em você...

Catadores de Almas parte 2 - Se a sua alma for roubada por um Catador de Almas, reze para que as pessoas certas vão ao seu resgate.

Catadores de Almas - parte 3 - a Morte é companheira de todo Combatente. Mas é sempre melhor quando se sobrevive para celebrar a vitória.

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Foto Rèmy Martin
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:80101_R%C3%A9my_Martin_XO_Excellence_(13262041704)_(2).jpg
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/3f/80101_R%C3%A9my_Martin_XO_Excellence_%2813262041704%29_%282%29.jpg
Atribuição: Nigab Pressbilder / CC BY (https://creativecommons.org/licenses/by/2.0)

- Partitura Mozart
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Mozart_sonata_6.png
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/15/Mozart_sonata_6.png
User:Piupianissimo / Public domain

- Itelmen ou Kamchadal, é uma língua tradicionalmente falada na Península de Kamchatka, na Rússia, e hoje, menos de 100 pessoas a falam. (fonte Wikipedia)



Comentários

Um brinde à vida, à boa música, aos generosos e incansáveis amigos! essas são as verdadeiras armas de qualquer um de nós como corajosos combatentes pelo equilíbrio, pela Luz e pela harmonia de todas as existências! Obrigada, Zoraya, por vivificar tão magicamente nossa batalha diária!
Carla Dias disse…
Lucrécio Lucas é um personagem muito interessante. Pe. Tércio que o diga... e que o seja também, não? Zoraya, adorei a história, a forma que você escolheu pra dizer que vale a pena cuidar, lutar por, buscar equilíbrio e luz. Beijos!
Anônimo disse…
Eita! A terra está cheia de pragas espirituais!
Interessante mencionar "VERDI 432 Hz", isso funciona mesmo ou foi só para constar!
branco disse…
fiquei preso, tentando ler com mais vagar para não perder as nuances. carla dias, que me permito chamar de carlinha, disse tudo o que eu poderia dizer e de maneira melhor.
Marcio disse…
Não gostei de saber que criaturas escrotas podem ser destruídas pelo som de Bach, Mozart ou Verdi.
Preciso ser mais cuidadoso em escolher o que ouvir.
Daqui em diante, só vou ouvir pagode, axé e sertanejo universitário.
De risco, já basta o vírus.
Clarisse Pacheco disse…
E nosso Lucrécio Lucas ludibriou mais uma vez a "Dama da Despedida" (adorei rsrs). Minha imaginação associou esse pobre Catador de Alma ao Smigol do Senhor dos Anéis, foi inevitável rsrs. Agora, não vou dizer que não fiquei preocupada: as boas músicas afastam criaturas funestas, mas o que será que as más músicas que nos cercam atraem, hein?
Zoraya Cesar disse…
Ana - eu que agradeço por estarmos juntas no mesmo lado da Batalha

Carla Dias - acho nunca conseguirei expressar o orgulho que tenho em vc gostar de meus textos!

Anônimo - sim, essa frequência é tida como de altíssima vibração e é transformadora, ie, é capaz de transmutar as energias de pessoas e ambientes para melhor. E realmente as Trevas não a suportam.

branco - lord white, tb me deixando envaidecida

Clarisse - hahaha, pq nao lembrar, né? a mesquinhez é a mesma para ambas as criaturas. E pode ficar preocupada sim, pois essas músicas q nos impingem hoje provocam mais malefícios do que ousamos aceitar.

A todos, muito, muito obrigada

Márcio - ainda vou colecionar seus comentários para um dia em q precise levantar meu astral. Eles fazem o mesmo efeito em mim q música de boa qualidade. bom demais. Ri muito, como sempre
Érica disse…
Seta mágica lyne? Só Zoraya mesmo pra inventar a hollow point das flechas rs
E mais uma vez o bem vence o mal. Deveria ser assim também na história real. Todos os dias nos deparamos com catadores de almas que sugam as energias em vida mesmo... Precisamos de muitos Lucrecios Lucas e padres Tercios pra encarar a batalha contra os sanguessugas que se espalham cada vez mais podesse planeta.
Albir disse…
Deslumbrantes seus personagens. Mas todos me assustam, heróis e vilões. É uma insônia que vale a pena.

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