QUE ISSO, MEU SANTO?! > Albir José Inácio da Silva
Gilda não tinha
dúvidas de que precisava morrer. A questão era encontrar um jeito indolor e
evitar escândalo. Não queria que sua mãezinha sofresse mais que o necessário
com sua foto no jornal.
Avaliou as
opções com a carta nas mãos. Nada de corda, pulo da ponte ou caminhão na
rodovia, não podia parecer suicídio. O problema é que qualquer coisa seria
suspeita depois daquela carta.
Sentada na cama,
deu com o Santo Antônio no quadro da parede.
- Me desculpe, meu Santo, mas já tá resolvido!
– disse e fechou os olhos. Quase desmaiou quando lhe ouviu o sermão:
- Então é assim
que te consideras devota? Não sabes que o suicídio é o caminho mais rápido para
o inferno? Essa é a tua fé? Por acaso eu já te desamparei antes?
Não! Nunca o santo
a tinha desamparado. Desde criança, quando começou a andar, parava diante da imagem
de Santo Antônio na igreja e ficava admirando. Os adultos brincavam “essa não
morre solteira!” Ela juntava quadros, medalhas, estátuas, livros e qualquer
coisa que se referisse ao santo. Nas doenças abraçava-se ao santinho de
pedra-sabão e em poucas horas estava de pé. Nas dificuldades escolares bastava
uma fugida à igreja, uma prece, e suas notas espantavam os professores.
Até aquele
noivo, que agora lhe destroçava o coração, Gilda entendeu como presente do santo.
Jorginho era bonito, inteligente, rico e, mesmo disputado por moças mais
bonitas e finas da cidade, tinha escolhido uma professorinha do grupo escolar.
Na carta ele
pedia desculpas e afirmava que ela precisava de alguém melhor do que ele e que restara
pouco daquele menino inocente que partira anos atrás. Poucas linhas que
terminavam desejando que ela fosse muito feliz e arranjasse alguém que
realmente a merecesse.
No desespero da
notícia, Gilda chegou a desconfiar do santo. Por que ele permitiu que o noivo a
abandonasse? Depois compreendeu que era mais um livramento. Quem seria agora o Jorginho,
naquela vida de balbúrdia, orgias e bebedeiras em que se transformaram as
universidades brasileiras, como repetia o Ministro da Educação, Jarbas
Passarinho?
Agora com a
carta na mão, envergonhada, pedia desculpas ao protetor. Passou o resto do dia
no quarto em orações e quando saiu era outra pessoa, renovada, que pôde
consolar a mãe ao dar a notícia do rompimento.
Além do santo,
também ajudou na cicatrização da alma de Gildinha, o Seu Fernando. Ele era dono
do armazém, mimava o paladar da moça com docinhos e lhe adoçava o coração com
elogios.
- Eu nunca vi,
nem em Portugal nem aqui, uma coisinha como tu – dizia meio sussurrado para
evitar os ouvidos dos empregados.
Ela sorria
prendendo os lábios com timidez e se demorava no balcão:
- O senhor é gentil
só pra me confortar, Seu Fernando, tem pena de uma moça abandonada como eu, já
ficando velha. Eu vou fazer trinta e cinco.
Seu Fernando era
casado e tinha um casal de filhos. Dona Rosa, a mulher, muito distinta e amiga
de Gilda, ajudava no armazém e fazia quitutes pras festas. Apesar dos afagos no
coração, Gilda evitava pensar no portuga. E quando, depois de um gole de
macieira, ele ousava ser mais direto, ela advertia:
- Que isso, Seu Fernando, o senhor tem
família. Só esse pensamento já é pecado!
- Eu sei disso,
menina Gilda. Também não tenho coragem de deixar a Rosinha. É uma mulher séria
e trabalhadeira. E tem as crianças, que ela cuida muito bem. É que o meu
coração acaba me saindo pela boca.
Durou alguns meses essa situação, a ponto de
dona Rosa esticar já uns olhares desconfiados para aquelas mesuras no balcão.
Gilda preferia que ele fosse como os outros, falasse grosserias, pois para
esses estava blindada, mas ele era honesto, respeitoso, gentil e isso lhe dava
insônias.
Naquela tarde,
depois de mais alguns mimos do português, Gildinha fugiu dali com o coração aos
pulos. Sentia os olhos de Seu Fernando nas suas costas e o sol da tarde aquecendo
tudo. Corrigiu o andar mais de uma vez ao perceber que os quadris se mexiam
além da sua vontade. Na igreja, nem falou com o padre como costumava fazer, foi
direto ao santo pedir perdão pelos pecados.
Terminava já suas
preces, apaziguada, quando o caixeiro do armazém pulou dentro da igreja:
- Seu Padre, corre!
Dona Rosa, a mulher do Seu Fernando, teve um negócio. O farmacêutico aplicou
até injeção e ela não acordou. Trouxeram o médico, mas ele disse que era melhor
chamar o senhor.
- Que isso, meu
Santo?! – espantou-se Gilda ainda ajoelhada. Mas logo se arrependeu – Não,
desculpe! Eu sei que o senhor não tem nada a ver com isso. Sua bênção, em nome
do pai, do filho e do Espírito Santo. Amém – e disparou para o armazém.
Guardado o luto
com a discrição e o recato que dos dois se esperava, Fernando e Gilda se
casaram com toda pompa, tendo por pajem e daminha os filhos do português.
Ao passar pelo santo
na parede da Igreja, Gilda piscou para ele. Mas teve um calafrio, benzeu-se e voltou
a sorrir debaixo de uma chuva de arroz.
Comentários
agora tem uma coisa meu irmão, se for começar a matar gente, ao melhor estilo da Lady Killer, avisa que já tô ficando com um ligeiro incomodo.
mas serião....bom demais da conta essa sua crônica.
My Lord, lembrar de sua Lady Killer num conto de Dom Albir é demais pro meu coração!
Quem diria, Dom Albir e seu 'quê' de maldade...