AMOR, AMARGO AMOR >>> Nádia Coldebella

- Eu amo o Rossano, Adailton! - O homem agitou-se ouvindo a voz dela ao telefone. Sentiu a garganta engrossar, um nó impossível de engolir. Porque agitava-se se disso ele sabia? 


POESIA: ENTRELINHAS E VERSOS: Pássaro Ferido


- Eu te usei Adailton. Queria que o Rossano olhasse para mim. - A agitação aumentou e ele, por um momento, chegou a achar que poderia sair do próprio corpo. Vermes poderiam comer meu cérebro agora e eu nem sentiria, ele pensouMas as mãos estavam bem conscientes e fecharam-se, obrigando as unhas a arrancar sangue das palmas. Lembrou-se que já sabia disso também. Procurou, sem êxito, se acalmar e engolir o nó que agora o sufocava. Isso não importa, ele pensou.


- Contei pra ele sobre nós, Adailton, contei sobre tudo. -  Dessa vez, o nó resolveu sair da boca num grunhido rouco:


- Porra, Sheiliane! - O Rossano é meu amigo, ele pensou. Enquanto estava atordoado, sem se importar com o amigo, sua língua adquiriu vida própria  - Sua puta! Puta! Puta! Você dormiu com todo mundo, sua puta vadia! - Porque estava tão bravo? Era mais uma informação repetitiva, o Rossano sempre soube disso e não  e não se importava. Porque queria matar o amigo e não aquela puta? Ah, Rossano, seu idiota, como você pode tratar assim uma mulher como a Scheiliene? Ela te venera, cara! Mas Rossano preferiu criar um abismo entre os dois, deixando Scheiliane sozinha para ser devorada por leões. 


- Ele não se importa, Adailton. E eu não suporto mais viver assim. - Ele sentiu o chão escorrendo sob seus pés quando ela começou a chorar. Não chore, querida, eu cuido de você, ele pensou. - Não suporto mais. Só quero te dizer que sinto muito, Adailton. Adeus. - A voz da mulher foi de tal lamúria que Adailton sentiu o coração liquifazer-se no peito ao pressentir a desgraça próxima. Eu te amo, Scheiliane! Sou louco por você, não me abandone! Fica comigo! Mas ela havia desligado o telefone antes que ele dissesse primeira frase e seus gritos ficaram no vácuo. 




Adailton saiu do banheiro correndo, sem olhar para a esposa, que entretida no Faceboock não percebeu seu rosto transtornado. Vou na empresa, Licinha, teve um problema lá, e foi direto a casa de Scheiliane. 


Tocou a campainha, socou a porta, ninguém abriu. Rossano não estava em casa. Pegou a chave que Scheiliane lhe dera e abriu com cuidado. Era assim que faziam quase todas as noites. Rossano sempre estava fora, então ele vinha furtivamente, dizia pra Licinha que ia na academia, no clube, no futebol, no bar, na empresa, abria a porta e encontrava a amada estendida nos lençóis lhe esperando, perfumada, nua e quente. Todo mundo sabia, naquela cidadezinha. Até Rossano sabia. Só Licinha não sabia. 


Scheiliane ainda estava quente, mas deitada no chão. Explodira a própria cabeça. Que tipo de arma faz aquilo?, ele pensou. Explode a cabeça, deixa a bala dentro e o sangue na parede? Onde ela conseguira uma arma? 


- Ah, Scheiliane, meu amor! Porque você fez isso? - Ajoelhou-se ao lado dela e chorou, chorou e chorou. Não foi fácil, ele via. Ela bebera muito, fumara muito. Ela escrevera uma carta. A luminária ainda estava ligada. Desculpas, ela pedia na carta, desculpas manchadas com lágrimas de dor. Os chinelinhos azuis que ele lhe dera ainda estavam em seus pés. O golpe da arma a derrubara da banqueta de um jeito estranho. Derrubara a banqueta sobre ela de um jeito estranho também. Então é assim, ele pensou, é assim que é.


E ele pensou que Rossano sabia deles, sabia dos dois, sempre soube, mas não se importava. Desde o dia em que Adailton a vira, sabia que nunca poderia deixá-la, mas Rossano lhe disse que ia casar com ela. Precisava casar, cidade pequena, sabe como é. E Rossano era tudo para ela, então Adailton casou com a Veralice. Desesperada por amor, Scheiliane mendigou de homem em homem, mas Rossano era tudo para ela, ela só queria que Rossano a notasse. Rossano sabia de tudo e Adailton também e um dia ela se jogou nos braços de Adailton e não precisou mais mendigar, mas Rossano era tudo pra ela e Rossano sabia de tudo, mas o que isso importava? Ah, Rossano, por que você não disse pra ela, porque não contou tudo? E ele pensou que aquele era um bom momento para pegar a arma e se dar um tiro também. Rossano, o que você fez? Não, ele podia matar Rossano... mas então Rossano nunca contaria nada. E como podia deixar Scheiliane assim, com todo o peso da culpa nos ombros? Não é justo, ele pensou.


Então Adailton foi cuidadosamente até a luminária e a tirou da tomada. Quem escreveria uma carta, com a luz apagada? Acendeu um cigarro, deu umas tragadas e colocou entre os dedos da mulher morta. Quem se mataria tragando um cigarro? Moveu a banqueta, deixou-a deitada ao lado, embaixo da mesa. Não era um lugar estranho para uma banqueta numa situação daquelas? Arrumou as pernas de Scheiliane, colocando uma sobre a outra, meio encolhidas, meio de lado, cuidando para não mexer a cabeça e espalhar o sangue. Será mesmo que ela havia sentado na banqueta? Por fim, tirou os chinelinhos, colocou um ao lado do corpo e levou o outro consigo. Quem perde um chinelo quando se dá um tiro na cabeça?, ele pensou. 


Adailton a olhou pela última vez, olhou em volta, não havia esquecido nada. Sempre fazia isso, olhar em volta para ver se não havia esquecido nada. Saiu do mesmo jeito que entrou. Ninguém havia visto ele entrar, ninguém havia visto ele sair. Nunca me viram, ele pensou. Entrou no carro e foi para casa. Ah, não posso ficar com o chinelinho. Licinha pode ver, ele pensou. Parou o carro próximo a um bueiro e atirou com lágrimas nos olhos, o chinelo lá dentro.


Foi Veralice quem o acordou no dia seguinte. Olha, Adailton, ela disse, a Scheiliane morreu. Parece que o Rossano a matou e fez parecer suicídio, ela disse. 


- Parece que a Scheiliane tinha um amante, Adailton - Ele olhou o jornal com espanto premeditado e coitado do Rossano, disse.

A ciência mostra o corpo que enlouquece os homens


Mas Rossano podia resolver tudo, não é? Era só contar. Porque você não conta sobre o Otavão, Rossano? É só contar que você estava nos braços dele ontem a noite, que nesses anos era nos braços dele que você estava. Eu sei, todo mundo sabe, só  a Scheiliane não sabia. Porque você não disse nada pra ela, Rossano? Você pode contar agora. Conte pra todo mundo que ela o venerava, que você  precisou dela para se casar, que ela mendigou amor de homem em homem, que eu a amava, que você sabia de tudo e não se importava, porque você estava nos braços do Otavão. Não, Rossano não vai contar, ele pensou. Melhor ser um marido traído, não é, Rossano? É que a cidade é pequena, eu sei como é, pensou Adailton com amargura e chorando por dentro.


Comentários

Carla Dias disse…
Pois é, Nádia... A necessidade de manter as aparências, a incapacidade de assumir a si e o amor que não encontra eco. Há combinações que criam histórias feito essa.
Zoraya Cesar disse…
Espetáculo de texto, Nádia. Você não é A Veludosa à toa. Espetáculo. foi um exercício do TP, né? bom além da conta.
Albir disse…
Sensacional o seu thriller, Nádia!

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