INTERVALO [Sandra Paes]

Manhã nublada. Agenda em branco. Mais uma terça feira. Apenas mais um dia no calendário. Essa coisa que inventaram pra partir o tempo em pequenos pedaços e lhe rotular com fatos, emoções, dramas ou qualquer outro recheio para preencher o que se chama de vida.

Mais um dia querendo ser especial diante dessa imposição que a consciência econômica nos impôs. Há que matar um leão por dia e dar valores a todos os atos, tudo precisa ser classificado dentro do quadro de produção.

- Vai fazer o que hoje? Já se torna previsível a conversa que surgirá ao telefone.

Isso depois de um nada ritualistico: - Tudo bem?...

Ontem tive vontade de sumir, ficar invisível talvez. As fantasias nas ruas, pretexto natural do Halloween, me mostrou essa verdade crua. Quero estar invisível. Visibilidade implica em atuação. Atuar detona atenção e crítica. Sempre. Talvez apenas queira sair de cena. Essa aí mesmo onde há sempre um papel a desempenhar.

Fazer o que? Que pergunta, é dia de Halloween!

Entre bebês, fadas, bruxas, super-heróis, personagens de filmes, e tantos outros, eu queria me vestir de invisibilidade. Passear entre todos com a grandeza de ser nada, ninguém, coisa qualquer ou coisa nenhuma.

Sim, o palco da vida também cansa. E em mim esse cansaço é mais antigo que a civilização grega, onde parece tudo isso começou. Essa coisa de se nomear personas e personagens. Preciso de um intervalo existencial. Se não for possível, invento.

Sim, um intervalo neutro, onde em silêncio se vê passar todas as cenas de sua vida, ou o que assim se denomina - pra mim é o atuar, para outros o curriculum vitae - que já apropriado pelos herdeiros da revolução industrial virou uma espécie de resumo do que se chama sua vida profissional.

Ora bolas, na vida sou amadora. Sempre fui. E agora me pego deixando de ser. Deixando de amar a vida? Talvez. Talvez querendo férias desse existir cheio de atos e crítica contínua sobre os mesmos.

Há que progredir materialmente aos olhos do que a sociedade humana ocidental chama de “estar bem” na vida. O quanto você consome nos bares. Quantas viagens você faz por ano, quanto você investe no mercado mobiliário. Quanto tempo passa na internet fazendo compras. Qual o seu último celular ou o ano de seu carro? Essas questões invisíveis devem ser respondidas em pequenas fatias de cobranças semestrais.

O descartar e renovar atingiu as relações humanas. Os pares nas ruas, ah, os pares... Inventaram isso lá no tempo do Noé e a moda de tal apresentação ainda vigora. Mesmo que seja por poucas horas. Sim, é so passar na porta das boates para ver a rotatividade dos pares. Inventaram o casamento – que pouco se sustenta hoje em dia - e inventaram o divórcio para equilibrar o fastio da parelha contínua.

Todos esses enredos perpassam as ruas cobertas de todas as fantasias à mostra, num intervalo obrigatório para dar folga aos modelos preconcebidos pela moda, ternos e gravatas, decotes e tubinhos, mini saias e calças abaixo da cintura, etc. Todas variações sobre o mesmo tema: qual seu personagem de hoje?

Não, não precisa responder. Se voce sabe, já é muito. Dá pra vivê-lo todo o tempo? Não creio. Então: intervalo, por favor!

Comentários

Antônio LaCarne disse…
esse blog é uma maravilha, já sigo e quero voltar aqui sempre.
Junto-me ao coro, Sandra: - Intervalo! :)
Anônimo disse…
eu apoio essa reflexão.moh

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